quarta-feira, dezembro 28, 2005

Voz do sangue

Matou Conrado a paixão
Que o trazia sucumbido,
Entregando o coração
A Alexandrina Balão,
Que o recebeu por marido.
Depois de um bom par de meses,
De pensar e mais pensar,
E discutir muitas vezes,
Os referidos fregueses
Abalaram do lugar.
Não os viu Deus com bom olho,
Pois se um filho rechonchudo
Deu-lhes, era o tal pimpolho,
Além de tudo, caolho
E mudo, acima de tudo.
Conrado, que o filho adora,
Nina-o, beija-o, mexe, vira,
Debalde suspira e chora:
Palavra não sai p'ra fora,
Palavra alguma lhe tira.
Volta ao lugar do casório
E logo das nuvens cai,
Pois ao ver no consistório
Da igreja, o padre Libório,
Diz a criança: PAPAI!

(Olavo Bilac, 1865-1918, Brasil
in "Antologia do Humorismo e Sátira",
Editora Civilização Brasileira - RJ, 1957)

Velho conto

Nicolau, varão casado
Porém de sorte mofina,
Porque não tem descendência,
Resolve, desesperado,
Ir até a Palestina,
Para fazer penitência.
Parte, enceta a romaria,
Em casa a esposa deixando,
Sozinha, nos tristes lares,
E, piedoso, dia a dia,
Passa três anos rezando
Pelos Sagrados Lugares.
Pede ao Senhor que consagre,
Pelos gemidos que solta,
Esse desejo que o abrasa;
— E efetua-se o milagre,
Pois Nicolau, quando volta,
Acha três filhos em casa...

(Olavo Bilac, 1865-1918, Brasil
in "Antologia do Humorismo e Sátira",
Editora Civilização Brasileira - RJ, 1957)

domingo, dezembro 25, 2005

Quem a paca cara compra, paca cara pagará!

(Peleja com Zé Pretinho dos Tucuns)

Apreciem, meus leitores,
Uma forte discussão,
Que tive com Zé Pretinho,
Um cantador do sertão,
O qual, no tanger do verso,
Vencia qualquer questão.
Um dia, determinei
A sair do Quixadá
— Uma das belas cidades
Do estado do Ceará.
Fui até o Piauí,
Ver os cantores de lá.
Me hospedei na Pimenteira
Depois em Alagoinha;
Cantei no Campo Maior,
No Angico e na Baixinha.
De lá eu tive um convite
Para cantar na Varzinha.
Quando cheguei na Varzinha,
Foi de manhã, bem cedinho;
Então, o dono da casa
Me perguntou sem carinho:
— Cego, você não tem medo
Da fama do Zé Pretinho?
Eu lhe disse: — Não, senhor,
Mas da verdade eu não zombo!
Mande chamar esse preto,
Que eu quero dar-lhe um tombo
— Ele chegando, um de nós
Hoje há de arder o lombo!
O dono da casa disse:
— Zé Preto, pelo comum,
Dá em dez ou vinte cegos
— Quanto mais sendo só um!
Mando já ao Tucumanzeiro
Chamar o Zé do Tucum.
Chamando um dos filhos, disse
Meu filho, você vá já
Dizer ao José Pretinho
Que desculpe eu não ir lá
— E que ele, como sem falta,
Hoje à noite venha cá.
Em casa do tal Pretinho,
Foi chegando o portador
E dizendo: — Lá em casa
Tem um cego cantador
E meu pai mandou dizer-lhe
Que vá tirar-lhe o calor!
Zé Pretinho respondeu:
— Bom amigo é quem avisa!
Menino, dizei ao cego
Que vá tirando a camisa,
Mande benzer logo o lombo,
Porque vou dar-lhe uma pisa!
Tudo zombava de mim
E eu ainda não sabia
Se o tal do Zé Pretinho
Vinha para a cantoria.
As cinco horas da tarde,
Chegou a cavalaria.
O preto vinha na frente,
Todo vestido de branco,
Seu cavalo encapotado,
Com o passo muito franco.
Riscaram duma só vez,
Todos no primeiro arranco
Saudaram o dono da casa
Todos com muita alegria,
E o velhote, satisfeito,
Folgava alegre e sorria.
Vou dar o nome do povo
Que veio pra cantoria:
Vieram o capitão Duda Tonheiro,
Pedro Galvão, Augusto Antônio Feitosa,
Francisco, Manoel Simão,
Senhor José Campineiro,
Tadeu e Pedro Aragão.
O José das Cabaceiras
E o senhor Manoel Casado,
Chico Lopes, Pedro Rosa
E o Manoel Bronzeado,
Antônio Lopes de Aquino
E um tal de Pé-Furado.
Amadeu, Fábio Fernandes,
Samuel e Jeremias,
O senhor Manoel Tomás,
Gonçalo, João Ananias
E veio o vigário velho,
Cura de Três Freguesias.
Foi dona Merandolina,
Do grêmio das professoras,
Levando suas duas filhas,
Bonitas, encantadoras
— Essas duas eram da igreja
As mais exímias cantoras.
Foi também Pedro Martins,
Alfredo e José Segundo,
Senhor Francisco Palmeira,
João Sampaio e Facundo
E um grupo de rapazes
Do batalhão vagabundo.
Levaram o negro pra sala
E depois para a cozinha;
Lhe ofereceram um jantar
De doce, queijo e galinha
— Para mim, veio um café
E uma magra bolachinha.
Depois, trouxeram o negro.
Colocaram no salão,
Assentado num sofá,
Com a viola na mão,
Junto duma escarradeira,
Para não cuspir no chão.
Ele tirou a viola
De um saco novo de chita,
E cuja viola estava
Toda enfeitada de fita.
Ouvi as moças dizendo:
— Oh, que viola bonita!
Então, para eu me sentar,
Botaram um pobre caixão,
Já velho, desmantelado,
Desses que vêm com sabão.
Eu sentei-me, ele vergou
E me deu um beliscão.
Eu tirei a rabequinha
De um pobre saco de meia,
Um pouco desconfiado
Por estar em terra alheia.
Aí umas moças disseram:
— Meu Deus, que rabeca feia!
Uma disse a Zé Pretinho:
— A roupa do cego é suja!
Botem três guardas na porta,
Para que ele não fuja
Cego feio, assim de óculos,
Só parece uma coruja!
E disse o capitão Duda,
Como homem muito sensato:
— Vamos fazer uma bolsa!
Botem dinheiro no prato
— Que é o mesmo que botar
Manteiga em venta de gato!
Disse mais: — Eu quero ver
Pretinho espalhar os pés!
E para os dois contendores
Tirei setenta mil réis,
Mas vou completar oitenta
— Da minha parte, dou dez!
Me disse o capitão Duda:
— Cego você não estranha!
Este dinheiro do prato,
Eu vou lhe dizer quem ganha:
Só pertence ao vencedor
— Nada leva quem apanha!
E nisto as moças disseram:
— Já tem oitenta mil réis,
Porque o bom capitão Duda,
Da Parte dele, deu dez...
Se acostaram a Zé Pretinho,
Botaram mais três anéis.
Então disse Zé Pretinho:
— De perder não tenho medo!
Esse cego apanha logo
— Falo sem pedir segredo!
Como tenho isto por certo,
Vou pondo os anéis no dedo...
Afinemos o instrumento,
Entremos na discussão!
O meu guia disse pra mim:
— O negro parece o Cão!
Tenha cuidado com ele,
Quando entrarem na questão!
Então eu disse:
— Seu Zé, Sei que o senhor tem ciência
— Me parece que é dotado
Da Divina Providência!
Vamos saudar este povo,
Com sua justa excelência!
PRETINHO
— Sai daí, cego amarelo,
Cor de couro de toucinho!
Um cego da tua forma
Chama-se abusa-vizinho
— Aonde eu botar os pés,
Cego não bota o focinho!
CEGO
— Já vi que seu Zé Pretinho
É um homem sem ação
Como se maltrata o outro
Sem haver alteração?!...
Eu pensava que o senhor
Tinha outra educação!
P.
— Esse cego bruto, hoje,
Apanha, que fica roxo!
Cara de pão de cruzado,
Testa de carneiro mocho
— Cego, tu és o bichinho,
Que comendo vira o cocho!
C.
— Seu José, o seu cantar
Merece ricos fulgores;
Merece ganhar na saia
Rosas e trovas de amores
— Mais tarde, as moças lhe dão
Bonitas palmas de flores!
P.
— Cego, eu creio que tu és
Da raça do sapo sunga!
Cego não adora a Deus
— O deus do cego é calunga!
Aonde os homens conversam,
O cego chega e resmunga!
C.
— Zé Preto, não me aborreço
Com teu cantar tão ruim!
Um homem que canta sério
Não trabalha verso assim
— Tirando as faltas que tem,
Botando em cima de mim!
P.
— Cala-te, cego ruim!
Cego aqui não faz figura!
Cego, quando abre a boca,
É uma mentira,pura
— O cego, quanto mais mente,
Ainda mais sustenta e jura!
C.
— Esse negro foi escravo,
Por isso é tão positivo!
Quer ser, na sala de branco,
Exagerado e altivo
— Negro da canela seca
Todo ele foi cativo!
P.
— Eu te dou uma surra
De cipó de urtiga,
Te furo a barriga,
Mais tarde tu urra!
Hoje, o cego esturra,
Pedindo socorro
— Sai dizendo: — Eu morro!
Meu Deus, que fadiga!
Por uma intriga,
Eu de medo corro!
C.
— Se eu der um tapa
No negro de fama,
Ele come lama,
Dizendo que é papa!
Eu rompo-lhe o mapa,
Lhe rompo de espora;
O negro hoje chora,
Com febre e com íngua
— Eu deixo-lhe a língua
Com um palmo de fora!
P.
—No sertão, peguei
Cego malcriado
— Danei-lhe o machado,
Caiu, eu sangrei!
O couro eu tirei
Em regra de escala:
Espichei na sala,
Puxei para um beco
E, depois de seco,
Fiz mais de uma mala!
C.
—Negro, és monturo,
Molambo rasgado,
Cachimbo apagado,
Recanto de muro!
Negro sem futuro,
Perna de tição,
Boca de porão,
Beiço de gamela,
Vento de moela,
Moleque ladrão!
P.
— Vejo a coisa ruim
— O cego está danado!
Cante moderado,
Que não quero assim!
Olhe para mim,
Que sou verdadeiro,
Sou bom companheiro
— Canto sem maldade
E quero a metade,
Cego, do dinheiro!
C.
— Nem que o negro seque
A engolideira,
Peça a noite inteira
Que eu não lhe abeque
— Mas esse moleque
Hoje dá pinote!
Boca de bispote,
Vento de boeiro,
Tu queres dinheiro?
Eu te dou chicote!
P.
— Cante mais moderno,
Perfeito e bonito,
Como tenho escrito
Cá no meu caderno!
Sou seu subalterno,
Embora estranho
— Creio que apanho
E não dou um caldo...
Lhe peço, Aderaldo,
Que reparta o ganho!
C.
— Negro é raiz
Que apodreceu,
Casco de judeu!
Moleque infeliz,
Vai pra teu país,
Se não eu te surro,
Te dou até de murro,
Te tiro o regalo
— Cara de cavalo,
Cabeça de burro!
P.
— Fale de outro jeito,
Com melhor agrado
— Seja delicado,
Cante mais perfeito!
Olhe, eu não aceito
Tanto desespero!
Cantemos maneiro,
Com verso capaz
— Façamos a paz
E parto o dinheiro!
C.
— Negro careteiro,
Eu te rasgo a giba,
Cara de gariba,
Pajé feiticeiro!
Queres o dinheiro,
Barriga de angu,
Barba de guandu,
Camisa de saia,
Te deixo na praia,
Escovando urubu!
P.
— Eu vou mudar de toada,
Pra uma que mete medo
— Nunca encontrei cantador
Que desmanchasse este enredo:
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dia, é um dado, é um dedo!
C.
— Zé Preto, esse teu enredo
Te serve de zombaria!
Tu hoje cegas de raiva
E o Diabo será teu guia
— É um dia,
é um dedo, é um dado,
É um dado, é um dedo, é um dia!
P.
— Cego, respondeste bem,
Como quem fosse estudado!
Eu também, da minha parte,
Canto versos aprumado
— É um dado, é um dia, é um dedo,
É um dedo, é um dia, é um dado!
C.
— Vamos lá, seu Zé Pretinho,
Porque eu já perdi o medo:
Sou bravo como um leão,
Sou forte como um penedo
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dia, é um dado, é um dedo!
P.
— Cego, agora puxa uma
Das tuas belas toadas,
Para ver se essas moças
Dão algumas gargalhadas
— Quase todo o povo ri,
Só as moças 'tão caladas!
C.
— Amigo José Pretinho,
Eu nem sei o que será
De você depois da luta
— Você vencido já está!
Quem a paca cara compra
Paca cara pagará!
P.
— Cego, eu estou apertado,
Que só um pinto no ovo!
Estás cantando aprumado
E satisfazendo o povo
— Mas esse tema da paca,
Por favor, diga de novo!
C.
— Disse uma vez, digo dez
— No cantar não tenho pompa!
Presentemente, não acho
Quem o meu mapa me rompa
— Paca cara pagará,
Quem a paca cara compra!
P.
— Cego, teu peito é de aço
— Foi bom ferreiro que fez
— Pensei que cego não tinha
No verso tal rapidez!
Cego, se não é maçada,
Repete a paca outra vez!
C.
— Arre! Que tanta pergunta
Desse preto capivara!
Não há quem cuspa pra cima,
Que não lhe caia na cara
— Quem a paca cara compra
Pagará a paca cara!
P.
— Agora, cego, me ouça:
Cantarei a paca já
— Tema assim é um borrego
No bico de um carcará!
Quem a caca cara compra,
Caca caca cacará!

Houve um trovão de risadas,
Pelo verso do Pretinho.
Capitão Duda lhe disse:
—Arreda pra lá, negrinho!
Vai descansar o juízo,
Que o cego canta sozinho!
Ficou vaiado o pretinho.
E eu lhe disse:
— Me ouça, José: quem canta comigo
Pega devagar na louça!
Agora, o amigo entregue
O anel de cada moça!
Me desculpe, Zé Pretinho,
Se não cantei a teu gosto!
Negro não tem pé, tem gancho;
Tem cara, mas não tem rosto
— Negro na sala dos brancos
Só serve pra dar desgosto!
Quando eu fiz estes versos,
Com a minha rabequinha,
Busquei o negro na sala,
Mas já estava na cozinha
— De volta, queria entrar
Na porta da camarinha!

(Cego Aderaldo, Aderaldo Ferreira de Araújo, 1878-1950,
in "Eu sou o Cego Aderaldo", prefácio de Rachel de Queiroz, Maltese Editora
São Paulo, 1994)

domingo, dezembro 11, 2005

A sesta

Na rede, que um negro moroso balança,
qual berço de espumas,
formosa crioula repousa e dormita,
enquanto a mucamba nos ares agita
um leque de plumas.

Na rede perpassam as trémulas sombras
dos altos bambus;
e dorme a crioula, de manso embalada,
pendidos os braços da rede nevada
mimosos e nus.

Na rede, suspensa dos ramos erguidos,
suspira e sorri
a lânguida moça, cercada de flores;
aos guinchos dá saltos na esteira de cores
felpudo sagui.

Na rede, por vezes, agita-se a bela,
talvez murmurando
em sonhos as trovas cadentes, saudosas,
que triste colono por noites formosas
descanta chorando.

A rede nos ares do novo flutua,
e a bela a sonhar!
Ao longe nos bosques escuros, cerrados,
de negros cativos os cantos magoados
soluçam no ar.

Na rede olorosa... Silêncio! Deixai-a
dormir em descanso!...
Escravo, balança-lhe a rede serena;
mestiça, teu leque de plumas acena
de manso, de manso...

O vento que passe tranquilo, de leve,
nas folhas do ingá;
as aves que abafem seu canto sentido;
as rodas do «engenho» não façam ruído,
que dorme a sinhá!

(Gonçalves Crespo, 1846-1883, Portugal
in "Miniaturas")

A tua roca

Quando te vejo à noitinha
Nessa cadeira sentada,
Xaile cruzado no peito,
Na cinta a roca enfeitada.

Os olhos postos na estriga,
Volvendo o fuso nos dedos,
Os lábios contando ao fio
Da tua boca segredos.

Eu digo, sem que tu oiças,
Pondo os olhos na tua roca:
Se eu um dia fosse estriga,
Beijaria aquela boca!

Que eu nunca te vi fiando
Sem invejar os desvelos
Com que desfias do linho
Os brancos, finos cabelos!

E aquela fita de seda
Com que enleias o fiado,
Irmã do lencinho verde
Que trazes no penteado?

Parece aquilo um abraço
De um amor que é todo nosso,
A trança do teu cabelo
Em volta do meu pescoço!

É por isso que eu murmuro
Vendo a fita que se enreda:
Quem me dera ser a estriga,
E ela a fitinha de seda!

Eu já sei o que sinto,
Se tristeza, se ventura,
Mal que suspendes a roca
Da tua breve cintura!

Penso que fias nos dedos
Os dias da minha vida,
Ao pé de ti sempre curta,
Ao longe sempre comprida!

Pareces-me um ramalhete
Sentada nessa cadeira,
E a fita da tua roca
A silva de uma roseira.

Meu amor, quando acabares
De espiar a tua estriga
E ouvires por alta noite
Soluçar uma cantiga,

Sou eu que estou a lembrar-me
Da tua divina boca,
E penso que em mim são dados
Os beijos que dás na roca!

(José Simões Dias, 1844-1899, Portugal
in "Peninsulares")

O teu lenço

O lenço que tu me deste
Trago–o sempre no meu seio,
Com medo que desconfiem
Donde este lenço me veio.

As letras que lá bordaste
São feitas do teu cabelo;
Por mais que o veja e reveja,
Nunca me farto de vê-lo.

De noite dorme comigo,
De dia trago – o no seio,
Com medo que os outro saibam
Donde este lenço me veio.

Alvo, da cor da açucena,
Tem um ramo em cada canto;
Os ramos dizem saudade,
Por isso lhe quero tanto.

O lenço que tu me deste
Tem dois corações no meio;
Só tu no mundo é que sabes
Donde este lenço veio.

Todo ele é de cambraia,
O lenço que me ofereceste;
Parece que inda estou vendo
A agulha com que o bordaste.

Para o ver até me fecho
No meu quarto com receio,
Não venha alguém perguntar-me
Donde este lenço me veio.

A cismar neste bordado
Não sei até no que penso;
Os olhos trago – os já gastos
De tanto olhar para o lenço.

Com receio de perdê-lo
Guardo – o sempre no meu seio,
De modo que ninguém saiba
Donde este lenço me veio.

Nas letras entrelaçadas
Vem o meu nome e o teu;
Bendito seja o teu nome
Que se enlaçou com o meu!

Por isso o trago escondido,
Bem guardado no meu seio,
Com medo que me perguntem
Donde este lenço me veio.

Quanto mais me ponho a vê – lo,
Mais este amor se renova;
No dia do meu enterro
Quero levá-lo p'ra cova.

Vem pô-lo sobre o meu peito,
Que eu hei-de tê-lo no seio;
Mas nunca digas ao mundo
Donde este lenço me veio.

(José Simões Dias, 1844-1899, Portugal
in "Peninsulares")

sábado, dezembro 10, 2005

Cantiga

Descalça vai para a fonte,
Leanor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição,
Saia de cor de limão,
Beatilha soqueixada;
Cantando de madrugada,
Pisa as flores na verdura:
Vai fermosa, e não segura.

Leva na mão a rodilha,
Feita da sua toalha;
Com üa sustenta a talha,
Ergue com outra a fraldilha;
Mostra os pés por maravilha,
Que a neve deixam escura:
Vai fermosa, e não segura.

As flores, por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
Ficam de inveja sem cor,
E de vergonha com graça;
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura:
Vai formosa, e não segura.

Não na ver o Sol lhe val,
Por não ter novo inimigo;
Mas ela corre perigo,
Se na fonte se vê tal;
Descuidada deste mal,
Se vai ver na fonte pura:
Vai fermosa, e não segura.

(Francisco Rodrigues Lobo, 1579-1621, Portugal
in "Éclogas")

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Atrás da porta

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei sobre o teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pêlos
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho

Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me entregar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostra que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua...

(Chico Buarque e Francis Hime, Brasil
Cara Nova Editora Musical, 1972)

Bilhete

Quebrei o teu prato
Tranquei o meu quarto
Bebi teu licor
Arrumei a sala
Já fiz tua mala
Pus no corredor
Eu limpei minha vida
Te tirei do meu corpo
Te tirei das estranhas
Fiz um tipo de aborto
E por fim nosso caso
Acabou, está morto

Jogue a cópia da chave
Por debaixo da porta
Para não ter motivo
De pensar numa volta
Fique junto dos teus
Boa sorte, adeus

(Ivan Lins e Vitor Martins, Brasil
ín CD "Essencial" de Fafá de Belém)

terça-feira, novembro 08, 2005

Fonte

Meu amor diz-me o teu nome
- Nome que desaprendi...
Diz-me apenas o teu nome.
Nada mais quero de ti.
Diz-me apenas se em teus olhos
Minhas lágrimas não vi,
Se era noite nos teus olhos,
Só porque passei por ti!
Depois, calaram-se os versos
- Versos que desaprendi...
E nasceram outros versos
Que me afastaram de ti.
Meu amor, diz-me o teu nome.
Alumia o meu ouvido.
Diz-me apenas o teu nome,
Antes que eu rasgue estes versos,
Como quem rasga um vestido!

(Pedro Homem de Mello, 1904-1984, Portugal
in "Poemas escolhidos", Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa)

domingo, outubro 23, 2005

Destrucción de la Mañana

1

Y de pronto una voz, mirada, un gesto
tropieza con mi idea de mí mismo
y veo aparecer en el espejo
a un ser inesperado, insospechado,
que me mira con ojos que son míos.

Ese desconocido que soy yo.
Ese al que los demás se dirigían
al dirigirse a mí, sin yo saberlo.
Ese irreconocible ser inmóvil
que inspecciona mis rasgos hoscamente.

En vano apremio al otro, el verdadero,
a aquel que unos segundos antes yo era.
Sólo está frente a mí, con ceño adusto,
ese desconocido inesperado
que me mira con ojos que son míos.

2

Trato de dar con una explicación.
-«Será un fugaz defecto de mi vista.
O mi retina habrá atrapado al vuelo
una imagen disforme, ahora atascada».

Y llamo a mis hermanas y a mi hermano.
Mas me detengo al verlos silenciosos
con aire interrogante. De repente
no aparentan ser ellos los que busco.

¡No conozco estas caras familiares!

Ni esa expresión cansada, sondeadora,
que se enfrenta conmigo, como un muro
que se extraña que quieran traspasarlo.
¡No sé de esas facciones ya marchitas!

Las capto con asombro. No hay recelo
en sus ojos. Tal vez no se dan cuenta
del cambio que han sufrido. O forman parte
de una conspiración para encubrirlo.

3

Vuelvo a mi habitación desalentado.
Todo se muestra igual mas desconfío.
Quedo en la oscuridad sin atreverme
a volver a encarar al que detenta
el privativo espacio de mi cuerpo.

¡Ese con el que intentan suplantarme!
Yo no quiero ese cuerpo ni por sombra.
Exijo el cuerpo de antes, el que es mío,
el que consta conmigo en los retratos.

Este cuerpo no sirve. Cada día
pondrá dificultades a mi mente.
Me atará con tenaces ligaduras
a su propio existir que desconozco.

Corroerá el pensamiento, mis deseos
y todo lo que soy lo echará a un lado
para hacerme su esclavo. Y ya jamás
seré quién soy, he sido, quién sería
si me dieran más tiempo con mi cuerpo.

4
Si me dieran más tiempo con mi cuerpo,
con el otro, el antiguo, el que era mío,
iría apresurado a recoger
todo aquello que me correspondía.

Lo que debía ser mío estos años
en que el lino elabora su blancura
y el hombre se elabora de sus sueños.
Lo que sentía mío aun siendo de otros.

No puedo dirigirme ya a la cita
donde esperan mis grandes ambiciones
que las vaya a abrazar. Ya no es posible
decirles: -«Aquí estoy». Con este extraño.

No reconocerían quién soy yo.
Si me dieran más tiempo con mi cuerpo...
Si mi cuerpo, el de ayer, me devolvieran
todo cuanto yo ansío él me traería.

5

Salgo a la calle. Es noche. Exacta, idéntica
a tantas otras noches. Caras jóvenes,
tersas, ajadas, viejas... ¿Entre cuáles
me clasificarán a mí esas caras?

Me mezclo entre la gente avergonzado
de la identidad falsa que conllevo.
Temiendo que averigüen que un intruso,
otro cuerpo, ahora ocupa el que era mío.

No sé disculparme de mi imagen.
Advertirles: -«No soy este que miran».
Rebusco si distingo entre los otros
un signo que me indique que soy yo,

el de antes, todavía, el ser que muestro.
Camino intimidado. Pero nadie
se alarma si transito por su lado.
Cual si fuera invisible a sus pupilas.

6

Ando con mi otro cuerpo por la calle.
Me detengo un instante junto a un grupo.
Unos muchachos jóvenes discuten
con gestos impacientes. -«Que hagan sitio.
No nos deben negar facilidades».

Asiento interiormente y me dan ganas
de sumarme a sus voces. Les escucho.
Son míos sus anhelos. Soy como ellos.
Me siento entre los míos nuevamente.

Como esa casa sola en un camino
que al tener compañía de otras casas
experimenta orgullo de ser pueblo.
-«Debemos reclamar nos abran paso
para así demostrar nuestra valía».

Con la sonrisa apruebo sus palabras.

Mas noto que me escrutan hostilmente.
Y entonces me doy cuenta que no soy
sino lo que revela el yo fingido.
Que mi sitio ha cambiado con mi aspecto.
A mí también incluían sus palabras.

Mas no sé qué ceder si nada guardo.
Si a nada yo he accedido todavía.
Si al igual que ellos grito a los mayores:
-«Hacedme sitio, ineptos». Pero en balde.

No hay sitio para nadie en parte alguna.
Apretujados todos maldecimos
pidiendo amor, dinero y gloria a costa
de quien sea y lo tenga. De regalo.
O a cambio de qué sea. A cualquier precio.

7
Es la angustia, la angustia de existir.
La angustia de pensar todos, cada uno,
que en torno hay enemigos sólo y fuera
del alcance de nuestras manos todo.

Es una muda angustia la que fluye
inagotable sobre las aceras.
La que entra, desbordándose, en las casas
e inunda los hogares de silencio

8

Entro en un cine. Al fondo, la pantalla
ilumina los sueños de la gente.
Uno se aísla en héroe unos minutos.

Uno vive en la vida que desea.
Uno vive en azares, en amores,
aventuras... Y vence todo obstáculo.
Qué agradable es vivir de esa manera.

Los personajes logran triunfo, amor...
Todo resulta fácil y sencillo.
Conmigo nada fue de esa manera.


9

Miro a mi alrededor. De la penumbra
surgen enamorados que se besan.
Otros siguen el film atentamente.

¿Será, quizá, el amor lo que han logrado?
¿O sólo una muchacha a quien besar
como las que yo llevo algunas veces?

Seguro que hay amor. Como el del cine,
como aquel que palpita entre los libros
o el que uno se imagina estando a solas.

Mas yo no tuve suerte. O persistencia.
No sé de un gran amor. Sí de pequeños.
Únicamente rozo nuestras nimias.

Breves, menudos cielos para el tacto,
los sentidos. Tristeza que da al alma
diminuto dolor. Amor pequeño.

Sólo un amor minúsculo y no obstante
me creo tan capaz de un amor grande,
de ese amor que aparece en libros, cine...


10

No es posible que no haya una mujer
igual que mi arquetipo. En las ciudades
circulan por millares, por millones.

Y mi única estará entre todas ellas.
No es que sea un iluso. Lo que ocurre
es que no di con ella todavía.

Aún no la descubrí. Y el tiempo corre
remolcando mi vida. No se espera
a que acuda hasta mí la que pretendo.

Y esa presura implica más conflictos.
Veo emplazar barreras y abrir fosos
en llanos que estimaba inalterables.


11

Y ha de ser cada día más difícil.
Ya no se acercará a mí desde el alba.
Su tierna adolescencia detendrían
letreros de «Prohibido», «No», «Ya es tarde».

¿De dónde llegará? Si en su figura
deslumbra el mediodía, otros amores
habrán puesto en su oído usados sueños.
Y con cierta aprensión ambos tendríamos
que perdonar minucias trascendentes.

Cubrir con alegría la tristeza
de no habernos hallado el uno al otro
en la estación de amar, cuando se es joven.
¿Y si nunca llegara yo a encontrarla?


12

Si pudiera volver a mi pasado...
Quizás en mi pasado ella sí estaba
y yo no supe verla. Está tal vez
en él aún esperando y yo lo ignoro.

No es posible volver. Nada es posible.
Es todo tan distinto a lo soñado.
He de seguir en mi hoy. Confuso. Solo.
Aislado. Limitado yo a mí mismo.


13

Salgo a la calle. Dudo hacia cuál lado
dirigirme. Da igual un sitio que otro.
Todas las direcciones se bifurcan
en incomodidad o aburrimiento.

De la alta oscuridad baja la lluvia
tropezando en las ráfagas del aire
y se agarra al cabello, manos, traje...

Es bueno caminar en la llovizna.
Es bueno andar despacio bajo el agua.
Sin rumbo uno asimismo, lluvia y viento,
como agua y soplo, nada, por la calle.


14

Los nudillos golpean los cristales
de un bar en una esquina. Hasta mí arriba
mi nombre que me busca entre la lluvia.

Es grato oír el nombre que uno lleva.

Es grato descubrir que uno aún importa.
Que importa a sus amigos que le llaman
cuando pasa uno andando por la calle.


15

Me acerco adonde están. El bar alberga
una concentración de espesas sombras
que se agitan con ruido y gesticulan
en el local oscuro. Como arañas

las lámparas descienden desde el techo
y acechan los grupitos de las mesas.
Y unos rostros sonríen saludándome.
¡Esas caras no son de mis amigos!

Son sus caricaturas despiadadas
hechas por enemigos implacables.
Y ellos estarán viendo al que me usurpa
sin mostrar estupor. Por si lo ignoro.

Es este nuevo cuerpo el que confunde
a la gente. Son estos nuevos cuerpos
ilícitos que a todos nos habitan
los que impiden la antigua convivencia.


16

Es falso el entusiasmo de las voces
y todos lo sabemos. Mas se charla
para evitar preguntas que en las sombras
aguardan con temor que se las llame.

Y se beben cervezas cual si fuera
a batirse algún record para el Guiness

Nadie pregunta nada. Se discurre
y alborota de cosas que no importan
para aclarar aquellas importantes
que duele mencionarlas por frustradas.



17

Según luce en la historia, algunos hombres
a mi edad, nuestra edad, ya disponían
del poder, de la gloria, del dinero...
Les llegó por la herencia o por la suerte.

Mas miramos a aquellos, unos pocos,
que escalaron las cimas más lejanas
a base de un esfuerzo sobrehumano.

El que nos propusimos emprender
y ninguno ha cumplido. Nuestros sueños
quedaban a jirones entre riscos
que nos era imposible superar.

O abandonaron demasiado pronto,
cuando se presentaba, rudamente
insalvable, cualquier dificultad.


18

Ya no me inquieren: -«¿Cómo van tus libros?
A ver si los envías a algún premio
de esos tan millonarios que hay a espuertas
y te haces rico y célebre un día».

Yo siempre contestaba con despego:
-«No confío en los premios. Lo que escribo
es muy original, muy diferente
a lo que están haciendo los demás».

Tal vez ahora ya saben que mandaba
en verdad mis trabajos a concursos,
sin que mi nombre nunca apareciese
ni siquiera en la previa selección.


19

Y pateé con tesón la senda ingrata,
sembrada de esperanzas y amarguras,
de las editoriales. Fortalezas
altivas. Dura piedra. Inexpugnables.

Nunca el Departamento Literario
requirió mi presencia a su oficina.
Y siempre el manuscrito repelido
regresaba apenado hacia mi casa.

Me faltaba el marchamo seductor
de un nombre consagrado. Me daba ánimos:
-«Les conturba mi modo de expresarme».
Me exculpaba: -«Me avanzo a los de mi época».

De súbito comprendo que el constante
gotear del trato unánime avisaba
que mis textos quedaban por debajo
del listón que marcaba cotas mínimas.

Me sobrevaloré demencialmente.
Confundí vocación por mi deseo.
Pugnaba para ser un elegido
y ni estaba en el grupo de llamados.


20

¿Cómo he tardado tanto en darme cuenta?
Los datos anunciaban claramente,
hasta con fluorescentes de colores,
que había un error grave en mis esquemas.

Me obcequé en proseguir, empecinado
y tenaz, por la senda equivocada
-los datos recalcábanlo insistentes-
para llegar así a ninguna parte.


21

Bebemos sin cesar. Copiosamente.
Semejantes, rodeados por las sombras,
sombras también nosotros ¿o lo somos?
de aquellos que a ser íbamos los que éramos.

Estamos a años luz de quienes fuimos.
De aquel grupo de jóvenes, cada uno
apretando en las manos sus proyectos.
¿Tan sólo frustración es el ser joven?

Y les digo: -«Parece ayer clamábamos:
"Haced sitio. Queremos ser iguales
sin distinción de edad. Triunfe el que valga.

Abrid paso, mediocres, a los genios".
Estáis aquí a mi lado. Estamos juntos
asidos a la soga del fracaso.

¿Por qué gritabais, pues, por qué gritabais?
¿Por qué gritaba yo? ¿por qué gritábamos?
¿Y por qué gritan ahora los más jóvenes
si jamás nos es dable alcanzar nada?»

Pero nadie contesta. Ni yo mismo
percibo el movimiento de mis labios.
Estoy hablando solo, interiormente
Deprimido, me voy sin despedirme.


22

El aire es fresco, frío, por la calle.
Me estremece un molesto escalofrío.
Si pudiera arrumbar en un portal
mi figura, tirada como inútil...

Regalarla a un anciano y yo adquirir
un cuerpo más acorde con mi mente.

Si vislumbrara el medio de evadirme...
Librarme de esta forma y ocultarme.
Soltarla y que vegete por las plazas
igual que esas que vagan como autómatas.

Mas de mí no se aparta. Tercamente,
ceñuda, va conmigo. No me deja.

Escucho sus pisadas que son mías
resonar duramente sobre el suelo,
donde la altiva nube de hace poco
se arrastra, ya vencida, humildemente.


23

Me detengo a fijarme en otros cuerpos.
Gordos, delgados, altos, grandes, bajos.
Cuerpos pequeños, ínfimos, enormes,
huesudos, desgarbados y contrahechos.

Vigilo cuando allegan a mi lado
por si entre ellos surgiera, de improviso,
el cuerpo que tenía, ansiosamente
buscándome, él también, entre el tumulto.

Pero no hay más que viejo en la calle.
Cabellos blancos, calvas... Las arrugas
aran la piel rojiza de las caras.
Caras sonrientes, tristes. Todas viejas.

Son montones de células extintas
pegadas a proyectos de cadáveres.
Las estudio con odio y repugnancia
como si fueran copias de mis rasgos.


24

Paso ante un Pub y maquinalmente entro.
El Black and tan se agita insomne, incómodo
tras la barra del bar. El altavoz
sibilino matiza su desgarro.

Debe ser noche de Ellington. Creole
love call se despereza suavemente.
Su sinuosa caricia se introduce
turbadora en la sangre y los sentidos.

Una mujer tropieza con mi hombro.
Me sonríe. Sonrío. Nos miramos.
Qué agradable es tener a una mujer
que nos mire a los ojos y sonría.

Es joven y es bonita. Pelirroja.
No hay mejor compañía para el hombre
que el cuerpo femenino de amplio escote.
Qué bien se está a su lado revisándolo.

Es mejor la bebida, hablar, la risa...
Todo sabe mejor si está presente
una mujer bonita. Más si es joven.
Incluso estar de pie. O ir en taxi.


25

Qué tierno es el abrazo, el roce
de su piel, tan suavísima, en la mía.

Qué agradable es tener una mujer.

Y qué grato el cansancio placentero
que adormece la sangre dulcemente.


26

Al despertar es como haber dormido
meses en este incómodo camastro.

Junto a mí se da vuelta una mujer.
Duerme profundamente. No sonríe.

Miro el reloj. Las cuatro menos cinco.
No es bonita. No es joven. ¿Cómo pude
acostarme con ella si a mejores
yo rechacé otras veces? Me levanto.

Debía estar borracho. Aún otro día
perdido, malogrado. Como siempre.

En silencio me visto y al marcharme
ella sigue en letargo. Ronca un poco.


27

Es absurdo vivir. Y duele mucho.
Mi vida no era al mundo necesaria.
No soy más que un estorbo para algunos
y un estorbo también para mí mismo.

Y así somos los más. Unos objetos
molestos arrojados a la vida
que aparta alguna gente cuando avanza.
Todo ha salido mal. Todo mal sale.


28

El aire es fresco, frío, por la calle.
Aposté mi fortuna a un solo envite
creyendo, apresurado, que tenía
los naipes de escalera de color.

Y resultó un farol al enseñarlos.

Nunca podré tener acceso al podio.
No es válida la entrada que poseo.
Toda mi vida he estado en la estación
donde no pasa el tren que yo aguardaba.


29

Me había ya olvidado del intruso,
el que ahora va conmigo, el que yo soy.
Se refleja en un vidrio, mas no admira
las muestras que se exhiben en la tienda
pidiendo las libremos de su encierro.

Me espía a mí. Indagamos de hurtadillas
si hay alguien que repare nuestro examen.
La acera está vacía en todo el tramo.
Y reviso sus rasgos fríamente.
Con imparcialidad. Neutral. Ecuánime.

Intenta sonreír, mas su sonrisa
es un gesto forzado que desvela
arrugas en el rostro del yo espurio.
Me mira consternado. Con desánimo.
Vuelvo la espalda y cruzo la calzada.


30

Es injusto querer justificarse
uno ante sí arguyendo: -«No hubo suerte».
Esto es lo que se imparte a los demás.
La verdad la sabemos bien cada uno.

Uno no puede dar lo que no tiene.

Las cosas son así. Nadie es culpable
en la mezcla confusa, tiempo y vida,
que nos forma y deforma indiferente.

Soy de los más que estamos ahí, ahogándonos
en la propia corriente que nos nutre.

Como el sol detenido en la pared
que empuja su calor contra las piedras,
apretujados todos. Maldiciendo.

Maldiciendo a los otros. Maldiciéndonos.

Podemos, sí, decir que hemos vivido.
Como el que ha realizado una tarea
penosa, decir cada uno: -«He vivido».
Que es igual que afirmar: -«He fracasado».


31

Me paro ante una iglesia altiva, estática,
emboscada en la noche, como un monstruo
enorme dormitando a la intemperie.

Un día ella fue centro jubiloso
de una palabra mágica, increíble.

Una palabra sola, inmensa, grande.
Cabía el mundo entero en ella: Dios.
Era ella el mundo entero. Más aún.
Era, ella, sola, el mundo. Tan sólo ella.

Pero nuevas palabras la acosaron
golpeando su distante placidez.

Y roto el cascarón vertió su nada
viscosa: no conciencia tras la muerte.
No hay por qué lamentarse. En mí ya es hábito
perder. Tanto en lo abstracto como físico.

Me aparto resentido. Entre unas ramas
con precaución se asoma una farola.


32

Si pudiera volver a mi pasado...
A aquella adolescencia ingenua y tímida.
A la incógnita que representaba
para mis familiares, para mí,
mi porvenir repleto de promesas.

Yo sería importante y poderoso.
No sabía por qué, cómo ni cuándo.
Pero ello no importaba. Lo sería.
Estaba destinado a grandes cosas.

Los diarios dedicáranme amplias páginas.
Tendría que firmar miles de autógrafos.
Y fuera mi intelecto celebrado.

Me admirarían todos. Aun aquellos
que me mostraran sólo indiferencia.
Un día no sé cómo, por qué, cuando,
yo sería importante y poderoso.

Todo ha salido mal. Quizá no he hecho
bien las cosas. No di con la manera
apropiada, tal vez, para que salgan
bien las cosas. O porque emprendí cosas
que nunca me podrían salir bien.


33

Y estoy envejeciendo. Mas rechazo
esta figura mía en el camino
del penúltimo tramo de la vida.
Antes tengo que usar la juventud.

Estos años atrás, que dicen jóvenes,
tuve que dedicarlos a buscar
amor, gloria, dinero... No podía
detenerme a vivir. Era lo urgente
atrapar el amor, gloria y dinero.

Debía sorprenderlos en atajos
que irían señalándome mis obras.
¡Estaba tan seguro! Ganaría
un lugar prominente en el Olimpo.
Y trabajé y sufrí. No tengo nada.

Necesito más tiempo de ser joven
pues trabajé y sufrí para poseer
amor, gloria y dinero siendo joven.
Y nada he conseguido. Ni ser joven.


34

Debía haber vivido diariamente.
Vivir no más allá de cada día.
Plenamente vivir todos los días
pensando en cada día que se vive.

No en el vivir de ayer, mañana... El día
solo de la existencia cotidiana.
El día que se vive diariamente.
Ese día que nunca yo he vivido.


35

Si oteo mi pasado sólo avisto
recuerdos agradables de películas
y libros. La ficción y personajes
asumidos por mí como algo propio.

Y sueños inventados que sembraba
para segar amor, gloria y dinero.

Cual si mi vida real hubiera sido
la vida no vivida por mi cuenta.
Cuando he debido hacerlo por mí mismo
todo ha salido mal. Y aún mal me sale.


36

¿Acaso soy mejor yo que los otros?
¿Son mi cuerpo y espíritu especiales?
¿Acaso soy yo un héroe excepcional
de esos de las películas y libros?

He de asentar los pies sobre la tierra.
Verme como el sinónimo ruinoso
de uno más del tropel de los humanos.
Alguien muy parecido a aquellos otros
que yo he menospreciado muchas veces.

¿Por qué, pues, no sumarme en el gran número?
¿Y por qué no me acepto en mi destino
si es vano rebelarse? No se puede.
No es posible escapar de lo que es uno.


37

Es triste, y tal vez grato, demostrarse
ínfimo, incomprendido, desdichado.
Deambular por la vida como gota
minúscula aferrada a una gran nube.

El ser ha regresado a sus fronteras
primeras, las recónditas, su esencia.
Casi aturdido germen reducido
a sí mismo, en sí mismo únicamente.

Solo consigo mismo. Aun excluyéndome
a mí que formo parte de ese yo último.
De ese yo incomprendido, desdichado,
capaz de renunciar hasta sí mismo.


38

¿Qué experimentaron los que han triunfado?
Los que el éxito ha aupado a los altares
de la televisión en horas punta.
Su existencia será maravillosa.

Se instalan en lujosas suites de hoteles
con los precios de vértigo, asediados
por mujeres bellísimas, fruyendo
bebidas y manjares exquisitos.
Admirados, mimados, envidiados
por una multitud que les aplaude.

Y es risible que enuncien que los célebres
de hoy son los olvidados de mañana.
Yo paso por la vida de olvidado
sin haber sido célebre un instante.


39

Nada ha salido igual a lo pensado.
Pero entonces ¿por qué se nos impuso
guardar en la razón la miel del sueño
si nos impiden luego degustarla?

Hubiera sido mucho más piadoso
el habernos dejado en la frontera
del no pensar, sentir, no soñar nada.
Quedar en el no ser, nunca haber sido.

Cuánto dolor se ha ahorrado y cuánto odio
ése, el que no ha nacido, aunque lo ignore.
Lo sabemos nosotros que vivimos,
que intuimos la nada. Y lo envidiamos.


40

Subo las escaleras de mi casa
despacio, descontento, taciturno.
Tan sólo un pensamiento me conforta:

Las casas están llenas de frustrados.
De seres, como yo, sin aptitudes
para ser singulares en enjambres
pese a aspirar brillara su luz propia.

Y poco a poco fueron acogiéndose
a un amor, profesión, final destino
que no era el que anhelaran. Y están solos.


41

Entro en mi habitación. Entramos ambos
mutuamente, eludiéndonos, sombríos.
Está cansado. Noto su cansancio.
Antes no me cansaba con mi cuerpo.

Le miro en el espejo. Está en silencio.
Abatido. Presume su derrota.
Pesaroso. Le escupo varias veces.
Tal vez me compadece y le doy lástima.

Acaso me comprende y me disculpa.
Quizás él también sufre al conocerse
indeseado en mí y juzga que es inútil
pretender que tolere su presencia.

Le aborrezco, es verdad. Y mi desprecio
se extiende por su rostro palidísimo
como áspera maleza por el monte.
Y golpeo el cristal que me lo muestra.

Hasta que le hago huir de mi mirada
sangrándole las manos. ¿O son mías,
por el dolor que corre entre los dedos
y vocifera alertas a mi mente?

Pero está ahí, en el suelo. En mil lugares
se distingue su faz atribulada
que me observa. Y transforma su expresión
en la actitud absorta que era mía.


42

Dejo correr la sangre de las manos.
Acostado en la cama la examino.
Las sábanas la sorben dulcemente
con la quieta avidez de su blancura.

Brota incesantemente. A borbotones.
Tibia y curiosa asoma a mis muñecas
y escapa presurosa de mis manos.

Son manos de vencido. Ellas debían
coger la gloria, amor, coger dinero.
Un día las creí capaces de ello.

Pero nada aprehendieron. No eran hábiles.
O el empeño excedió su exigua fuerza.
Pobres manos humildes y vacías.

Tiemblan un poco. Tiemblan asustadas.
Asustadas y débiles parecen
pedir excusas porque son mediocres.

Les sonrío a mis manos. Las levanto
y las uno. Las siento desvalidas.
Y atisbo como repta sigiloso
ese zumo tan rojo de la vida.

(José María Fonollosa, 1932-1991, Espanha
"Destrucción de la Mañana"
Ediciones DVD, Barcelona, 1988)

sábado, outubro 08, 2005

Broadway

El amor es un juego apasionante
y el mejor sustituto del amor.
De aquel amor inmenso, el amor único,
que uno halla varias veces por el tiempo.

El recíproco amor es lo más bello.
Lo sabemos los dos. Pero es muy grande
el vacío que se abre entre el amor
que se ha ido y el amor que aún no ha llegado.

¿Por qué llenarlo, pues, con la tristeza
si es posible colmarlo de sonrisas?

Si se ha ocultado el sol pueden los faros
del coche iluminar la carretera.
Mientras llega otro amor buscando el nuestro
juguemos, sólo juego, a enamorarnos.

Juguemos a querernos, sin querernos,
hasta el día en que alguno de los dos
vuelva a sentir amor por cualquier otro.
El amor es hermoso aun como juego.

(José María Fonollosa, 1932-1991, Espanha
in "ciudad del hombre, new york"
Ediciones El Alcantilado, 2000)

Times Square I

Me encanta transcurrir por las calles
pobladas de muchachas que, a mi paso,
«Rubio», «Cielo», «Tesoro», «Ven aquí»,
susurran. Es magnífico el paisaje.

Ni me hablen de los valles ecológicos.

Es como disponer de un gran serrallo
y elegir la que uno halla apetecible
para un rato. Y después escoger otras
si uno quiere y si tiene nuevas ganas.

Y todo por un precio razonable.

Qué acierto es ese oficio inestimable
de la prostitución. Todas las partes
involucradas sienten, satisfechas,
que han dado menos de lo recibido.

Debiera promoverse más su práctica.

(José María Fonollosa, 1932-1991, Espanha
in "ciudad del hombre, new york"
Ediciones El Alcantilado, 2000)

West 32nd Street

No quiso comprender que había acabado.
Se cansa hasta la rosa de ser rosa.
Se cansa la botella de su vino.

Esperaba en la calle cada noche
que saliese al balcón y la llamase.
Entonces traje a casa otra mujer.

La sacaron del río un mediodía
cuando el sol sudoroso caminaba
pegándose a la sombra de las casas.

Tumbado en la colina vi su entierro.
Y me sentí tan leve y descansado
como esa nube ociosa de la tarde.

(José María Fonollosa, 1932-1991, Espanha
in "ciudad del hombre, new york"
Ediciones El Alcantilado, 2000)

Bedford Street

Ella me dio el cuchillo y dijo: «Clávalo
en el segundo espacio intercostal».

«¿Cuál es?», le pregunté. Se abrió la blusa
y señaló, risueña, un punto: «Aquí».

Algo debía de haber en aquel viaje
que lo hizo diferente. Más intenso.

Se veían más cosas. Ascendíamos
a inéditos sonidos y colores.

No había confusión. Hasta el detalle
más ínfimo nos era comprensible.

Sugerí: «¿Por qué no con barbitúricos?»
«Es lento», me objetó. «Ya lo he probado.

Y el lavado de estómago es horrible.
Como un trauma mental, pero en lo físico»

Sustituí su dedo por el mío
y apoyé allí el cuchillo suavemente.

Y lo empujé de súbito. No fuera
que cambiara de idea si iba lento.

(José María Fonollosa, 1932-1991, Espanha
in "ciudad del hombre, new york"
Ediciones El Alcantilado, 2000)

Avenue of the Americas

Podemos elegir entre estar juntos
y hacernos mutuamente desgraciados.

O separarnos ahora y ser también
cada uno por su lado desgraciados.

(José María Fonollosa, 1932-1991, Espanha
in "ciudad del hombre, new york"
Ediciones El Alcantilado, 2000)

Prince Street

Debiera liberarse la mujer
de la opresión en que la tiene el hombre.

Bien es verdad que algunas son verdugos
que sin piedad castigan a sus machos.
Mas, por lo general, es la oprimida.
No cuenta como igual individualmente.
Se la ha apartado a un lado y asignado
las funciones higiénicas más bajas:
es cubo de basura de los hombres.

Resulta incomprensible su obediencia
a unas normas injustas desde siglos.
Parece resignada o adaptada,
incluso unas contentas, a estar presa
de algún dictadorzuelo cruel e imbécil
que la veja y le exige una sonrisa.

Sus razones, supongo, habrá tenido.
O, acaso, ha sido un simple experimento
ese dejar hacer. Mas comprobado
de manera exhaustiva que los hombres
no logran resolver la convivencia,
debiera liberarse la mujer.
Y asumir, ella, el mando de la especie.
Nosotros ya tuvimos nuestro tiempo
y hay que reconocer que fracasamos.

(José María Fonollosa, 1932-1991, Espanha
in "ciudad del hombre, new york"
Ediciones El Alcantilado, 2000)

Kennamore Street

Yo quiero que tú sufras lo que sufro:
aprenderé a rezar para lograrlo.

Yo quiero que te sientas tan inútil
como un vaso sin whisky entre las manos;
que sientas en el pecho el corazón
como si fuera el de otro y te doliese.

Yo quiero que te asomes a cada hora
como un preso aferrado a su ventana
y que sean las piedras de la calle
el único paisaje de tus ojos.

Yo deseo tu muerte donde estés.
Aprenderé a rezar para lograrlo.

(José María Fonollosa, 1932-1991, Espanha
in "ciudad del hombre, new york"
Ediciones El Alcantilado, 2000)

Elisabeth Street

Hoy me ha dicho mi madre: «Ya he tenido
en mis brazos los hijos de mis hijas.
Quizás un día alcance a ver los tuyos».

Yo no la he contestado. No acostumbro
a hacerlo. Rara vez. Sigo comiendo
mientras leo un periódico cualquiera.

Pero ella no se queja. No se queja
de mi duro silencio. Envejecida
queda ante mí, distante, humildemente.

Y ella debe haber sido, de mi vida,
el centro importantísimo en mi infancia.
Ahora es un casi olvido de la muerte.
Cual si estuviera muerta su presencia.

Yo no le digo nada. Me molesta
que esté pendiente siempre de mis actos,
con afán de ayudarme, de serme útil.

Me siente desdichado. Y piensa, acaso,
darme una solución. Dice, por eso:
«Quizás un día alcance a ver tus hijos».

Sin haber terminado de cenar
he salido de casa. Tengo que huir
de mi entorno, de mí. Ser yo, distinto.

No es fácil escapar de lo que es uno.
A veces se consigue, por un tiempo,
con un libro. O el cine. O la bebida.
Miro la cartelera de espectáculos.

(José María Fonollosa, 1932-1991, Espanha
in "ciudad del hombre, new york"
Ediciones El Alcantilado, 2000)

Doyers Street

No vendrá. De verdad. No vendrá nunca.

Mi cuarto es muy modesto para el éxito.
Ni hallaría la casa tan siquiera.

Mi cuarto es muy austero para amigos.
Nadie viene a reunirse entre estos muros.

Mi cuarto es también frío y muy pequeño.
¿Cómo cobijar, pues, un gran amor?

No es lógico esperar. No vendrá nunca
un éxito, un amigo, un gran amor.

Debiera de una vez cerrar la puerta

(José María Fonollosa, 1932-1991, Espanha
in "ciudad del hombre, new york"
Ediciones El Alcantilado, 2000)

William Street

Las mujeres que quiero van con otros.

Cuando pasan prendidas de otros brazos
miro a la que se apoya en mí y compruebo
que yo me he equivocado de mujer.
La gracia enrojecida de una risa,

el rumor tembloroso de un silencio,
la mirada furtiva que nos dice
que está la dicha allí, en aquellos ojos...
Esas cosas descubro sólo en otras.

Yo sé que lo que anhelo no anda lejos:
veo como ellas pasan de otros brazos.
Y trato de encontrarlo, incluso en ellas.
Mas siempre me equivoco de mujer.

Las mujeres que quiero van con otros.

(José María Fonollosa, 1932-1991, Espanha
in "ciudad del hombre, new york"
Ediciones El Alcantilado, 2000)

domingo, setembro 25, 2005

Meia noite na quitanda

- Cem reis de jindungo
Sá Domingas

o sol
entrega Sá Domingas à lua
nas quitandas dos musseques

E a quitandeira esperando

- Cinquenta reis de tomate
três tostões de castanha de cajú
um doce de côco
Sá Domingas

Ela vende na quitanda à meia noite
que o filho
está na estrada
precisa de cem mil reis
para pagar o imposto

o sol deixa Sá Domingas
na quitanda
e ela deixa o luar

Um tostão
dois tostões
três tostões
que o coração de Sá Domingas
sofre mais do que o corpo na quitanda.

(Agostinho Neto, 1922-1979, Angola
in "Poemas", Cadernos Capricórnio 28/29
Opal, Lobito, 1975)

Caminho do mato

Caminho do mato
caminho da gente
gente cansada
Oóó - oh!

Caminho do mato
caminho do soba
soba grande
Oóó - oh!

Caminho do mato
caminho de Lemba
Lemba formosa
Oóó - oh!

Caminho do mato
caminho do amor
amor do soba
Oóó - oh!

Caminho do mato
caminho do amor
do amor de Lemba
Oóó - oh!

Caminho do mato
caminho das flores
flores do amor.

(Agostinho Neto, 1922-1979, Angola
in "Poemas", Cadernos Capricórnio 28/29
Opal, Lobito, 1975)

Quitandeira

A quitanda
Muito sol
a quitandeira à sombra
da mulemba.

- Laranja, minha senhora
laranja boa!

A luz brinca na cidade
de claros e escuros
o seu quente jogo
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.

A quitandeira
que vende fruta
vende-se:

- Minha senhora
Laranja, laranjinha boa!

Compra laranjas doces
Compra-me também o amargo
desta tortura:
a vida a rastejar.

Compra-me a infância de espírito
este botão de rosa
que não abriu;
princípio impelido ainda para um início.

Ah!
Laranja, minha scnhora!
Esgotaram-se os sorrisos
Com que chorava
Eu já não choro.

E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas,
enterrado nas raças
e o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem;
como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas,
à beleza das ruas asfaltadas,
de prédios de várias andares
e à comodidade de senhores ricos.

A alegria dispersa por cidades

e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.

Aí vào as laranjas
como eu me ofereci ao alcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.

Tudo tenho dado
até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-a aos poetas.

Agora,
vendo-me eu própria.
- Compra laranjas,
minha senhora!

Leva-me para as quitandas da Vida.
O meu preço é único:
- sangue.

- Laranja, minha senhora
laranja boa!

Talvez vendendo-me
eu me possuo.

- Compra laranjas!

(Agostinho Neto, 1922-1979, Angola
in "Poemas", Cadernos Capricórnio 28/29
Opal, Lobito, 1975)

Poesia africana

Lá no horizonte
o fogo
e as silhuetas escuras dos imbondeiros
de braças erguidos.
Na ar o cheiro verde das palmeiras queimadas.

Poesia africana.

Na estrada
a fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira.
No quarto
a mulatinha de olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó de arroz.
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas.
Na cama
o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa.

Na céu o reflexo
do fogo
e as silhuetas dos negras batucando
de braços erguidos.
Na ar a melodia quente das marimbas.

Poesia africana.

E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem insone.

Os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.

(Agostinho Neto, 1922-1979, Angola
in "Poemas", Cadernos Capricórnio 28/29
Opal, Lobito, 1975)

Romance de Dionisos duriense

Dionisos do Douro!
Pêlos no púbis como um homem,
Calos nas mãos ossudas!
E bêbado de mosto e de alegria
A luz da negra noite e do claro dia!

MIGUEL TORGA



Do Marão a Montemuro
Voa uma águia de vinho.
Agosto já está maduro
E a uva rasga caminho.
Serra de cimo insubmisso,
Altos que ninguém agarra,
Verdejante os verga o tirso
Do deus de pénis e parra.
Com bucólica de cabras,
Lá nas ribas mais acima,
Em geios que Baco cava
Verdor de sol é vindima.
Enfrascados nas videiras
Correm cantos sem cabrestos;
Submissos às garrafeiras
Caem os cachos nos cestos.
A noite esfolha cantigas
E na cheia do bailar
Peludas pernas antigas
Sangram o bago no lagar.
Lume em chão de rosmaninho
Vareja a chula rabela;
Dança que se funda em vinho
Enleia o ar que a rodeia:
Onde o deus ergue o seu corno
Broncos corpos ganham asas,
Roda que roda e em torno
Dos corpos giram as casas.
Rio Douro borrachão!
Nas tuas águas tem brio:
A vinha está com pulgão
E vai lavar-se no rio.
De Baco a flauta e o tambor
Rompam que a praga não vinga!
Setembro vindimador
Não há-de negar a pinga.
Meninas de virgos quedos
Venha vinho até tombar!
Se tombardes nos vinhedos
De Baco haveis de emprenhar.
O sol que espincha das uvas
Beba a velha até cair!
O vinho em carnes viúvas
Rosas rubras faz florir.
Ó justiça da parreira
Que se cumpre nas adegas!
No comum da bebedeira
Rico e pobre são colegas.
Dívidas, dores, enxaquecas,
Escravos do mundo credor!
Despejem-me essas canecas
Que o vinho é bom pagador.
Culpas de bocas atadas!,
Esvaziem-me essa malga:
No vinho está perdoada
Pena que a alma nos salga.
Soldado que vais para a guerra,
No vinho o furor atarda:
O deus que dá a taberna,
À ira tira a espingarda.
Corra o beijo na orgia!
Àquele que o agarrar
A morte perdoa o dia
Em que o devia levar.
Liberal o deus bacante
Dá no vinho o que é preciso:
O amor que inspira o instante
De apurar o paraíso.
Dionisos duriense
Vinhateiro das escarpas!
Não há ferida que não pense
O bago que à pedra sacas.
O vinho é sangue de Cristo,
Dizem vozes, mas no agro
Onde a uva rasga o xisto,
Vinho é o sémen de Baco.

(Natália Correia, 1923-1993, Portugal
in "O Armistício"
Publicações D. Quixote, Lisboa, 1985)

No Templo de Florbela-Diana, a Castradora

À noite, em erma torre, um tigre aos pés,
Penteia-se Florbela. Ardentes velas
Citam-lhe a alma gémea do maltês
Coberta da poeira das estrelas.

O templo a chama. Venérea e mediúnica
Vai ao serviço em que a tem a lua:
Corça da deusa que lhe pede a túnica,
O luar a descasca e fica nua.

Sua carne de murta langorosa
Espalha na noite espasmos perfumados.
Nessa nuvem lunática e cheirosa
Castram-se efebos em eiras e montados.

E da mutilação, sangrando a oferenda,
Levam-na, castos, ao templo de Diana
Onde em veados os transforma a lenda
De Florbela, a Artemisa alentejana.

(Natália Correia, 1923-1993, Portugal
in "O Armistício"
Publicações D. Quixote, Lisboa, 1985)

terça-feira, agosto 30, 2005

lâmpada votiva

1. teve lenta agonia a minha mãe

teve lenta agonia a minha mãe:
seu ser tomou-se um puro sofrimento
e a sua voz apenas um lamento
sombrio e lancinante. mas ninguém

podia fazer nada. era novembro,
levou-a o sol da tarde quando a face
lhe serenou. foi como se acordasse
outra espessura dela em mim. relembro

sombras e risos, coisas pequenas, nadas,
e horas graves da infância e idade adulta
que este silêncio oculta e desoculta
nessas pobres feições desfiguradas.

quanta canção perdida se procura,
quanta encontrada em lágrimas murmura.


2. e não queria ser vista e foi envolta

e não queria ser vista e foi envolta
num lençol branco em suas dobras leves.
pus junto dela algumas rosas breves
e a lembrança represa ficou solta

e foi à desfilada. de repente,
a minha mãe já não estava morta:
era o vulto que à noite se recorta
na luz do corredor, se está doente

algum de nós, a mão que pousa e traz
algum sossego à fronte, a voz que chama
para o almoço, ou nos tira da cama,
quem nos trata das roupas, ou nos faz

bolos de anos e as malas, na partida,
e a quem a voz tremia à despedida.


3. agora deu-se à terra o que é da terra

agora deu-se à terra o que é da terra
e as flores amontoam-se em sinal
de ser fugaz a vida, sobre a cal.
e enquanto cada dia desaferra,

com seu sopro bravio virão ventos
e as gaivotas, levando-lhes outras vozes,
uivos do mar, pios, metamorfoses.
nada ela escutará nesses momentos.

haverá fumo e fogo, deslembranças
ecos, recordações, nuvens, ruídos,
outros cortejos tristes, recolhidos,
ali por perto hão-de brincar crianças

num jogo descuidado. um grupo vence-o.
mas fica a minha mãe posta em silêncio.


4. agora donne e vai ficar assim

agora dorme e vai ficar assim,
imóvel e coberta. já regressa
o carro que avançava tão depressa
na estrada por que vou e por que vim

às tantas da manhã. e tresnoitados
meus irmãos aguardavam-me à chegada,
sem esperança ou alegria, sem mais nada,
senão minutos tensos e contados.

depois os rituais, o respirar
tão a custo, os membros que se arqueiam
e distendem, e os vultos que rodeiam
a muda sombra vindo devagar.

beijei-lhe a fronte e fiz-lhe um leve afago:
do pouco que levei, tudo o que trago.


5. poderá ter morrido. ressuscita

poderá ter morrido. ressuscita
neste lugar humano, pobre fio
de água verbal que vai a medo, hesita,
e teme desmedir-se como um rio.

e muita coisa nele se derrama,
dita e não dita, pressentida, densas
aluviões, emaranhada trama
de obscuras raízes e presenças.

virão dias, semanas, meses, anos,
e os ciclos dos astros indiferentes,
mover-se-ão na mesma os oceanos
e as placas que sustentam continentes.

mola do mundo, o coração aviva
a chama desta lâmpada votiva.

(Vasco Graça Moura, n 1942, Portugal
in "Poesia 1993-1995", Círculo de Leitores, 2001)

blues da morte de amor

já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida.
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.

a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.

há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurei, a ver fugir a escala
do clarinete: - morrer ou não morrer, darling, ah, sim.

(Vasco Graça Moura, n 1942, Portugal
in "Poesia 1993-1995", Círculo de Leitores, 2001)

presente do indicativo

entro na cozinha. ela está no meio dos legumes,
lava e enxuga folhas tenras de alface, endívias
de oblonga contextura, corta a cebola às
rodelas, pica um ramo de coentros,
hesita um pouco sobre o roquefort, é certeira no vinagre e no sal,

e prudente no azeite. o ovo cozido espera a sua vez e a
saladeira aguarda na mesa junto aos azulejos brancos.
ela procura os talheres de madeira na gaveta,
pede-me qualquer coisa, a lâmina reluz sobre a tábua, perto do pão.
a preparação da salada requer vários gestos precisos

e uma poética discreta nos brilhos frisados, nos
paladares. pela janela chegam os ruídos da rua,
campainhas de bicicleta, ressaltos de uma bola.
o cão dormita no sofá. uns versos populares comparam
os olhos dela a azeitonas pretas.

(Vasco Graça Moura, n 1942, Portugal
in "Poesia 1993-1995", Círculo de Leitores, 2001)

carta à mulher amada sobre a morte de vitorino nemésio

quando ontem recebi o seu recado
comi uma laranja em memória do nemésio
imagino os amigos o david ainda fresco
o irmão que morreu e agora esta notícia
e cuido em si em mim enquanto penso nele
tivemos no entanto alguma sorte: ele não era
«o nosso querido amigo» mas porém
a mais íntima voz das respeitadas

comi uma laranja achei-a dulce et utile
própria da circunstância horaciana
de haver augusto em século que o não é
salvo na poesia muito teoricamente
(acha que é de mudar o meu registo?)
ele é agora chamazinha em deus
que pra ele existia e para mim não
mas sempre fui voraz, meditativo

ah rapsodo como a palavra transfigura a morte
e da experiência alheia se apropria
na poeira das coisas o teclado
tange a cinza possível e entre dentes vou
mordendo a polpa ao fruto e me adequo
com certa gravidade aos detritos do ofício
aquilo que se rasga emenda se rasura
mesmo se improvisando num terreiro

«não se pensa a morte: dá-se» escreve o que ontem
atingiu seu limite. lembra-se? nós falámos
a esse respeito dentro dum automóvel
foi salvo erro depois do alto da lixa
e eu disse tanta asneira que o nemésio
até cabia nela por ser bom
e perceber como eu guiava amando-a
falando assim por lhe arrastar a asa

contei-lhe do poema da colóquio
de ele i falar na vulva e sobre a pedra
de canto e de recanto eros rejuvenesce
os que toca non eos vult perdere
nec prius dementat e lhes arroja
as vogais prometidas a laranja
outro mandava dançá-la às raparigas
e destas se comovia vitorino

disso estou certo quanto encantamento
de poder as palavras transformar
em carícias penugens vice-versa
e contudo o seu porte era modesto
todo interior o ofício bafo humilde
de aparelhar por dentro seu tutano
e quanto corpo fino e flavo atravessou
decerto aqueles óculos (cabrinhas que ele teve)

nem sei porquê escrevo estas oitavas
as crianças vêem televisão eu penso em si
talvez escute o requiem de fauré
tão íntimo e prosaico à vida do nemésio
escrito para as almas nada feito
prõs rituais da morte pompas fúnebres
das diferenças de classe ou de estatuto
se eu falasse de hölderlin do jovem hegel

mas falo para si com gravidade
de nisto tudo estar a amá-la mais
como se querendo compensar a perda
que tão egoistamente sinto do nemésio
que era autor meu de tê-lo tido um pouco
sempre ali disponível pra relê-lo
onde inda está o bicho harmonioso
mas tem o bicho humano tais remorsos

porque me lembra alguém desta família
que eu vi morrer no hospital do carmo
e esse verso do sena que me acode
«de morte natural nunca ninguém morreu»?
e hoje não me faz falta nenhuma essa pessoa
salvo a de então eu ter-me comovido
eram os dezassete anos liceais
lirismo juvenil inda familiar

e se isto é melancólico como então se eu
lhe disser que me sinto hoje neste momento
trisavô bisavô do vitorino?
que me vai perguntar ou responder?
pode haver tanta coisa inesperada
e tanta surpreendida mas sei duma
que lha digo em directo meu amor
você pode calar mas não vai rir

e acho que devia estar aqui
semicerrando os olhos estirando
o seu próprio embaraço acolhedor
das minhas confusões e o corpo onde
quando me envolvo não penso nestas coisas
(nem queria regressar de humedecidos
meandros selva oscura conhecimento
ah sim conhecimento é a palavra)

tudo isto pra dizer-lhe meu amor
que é também amor esta serena
evocação da morte junto a si
onde o tempo não passa e onde passa
e onde às vezes parecemos conseguir
tocar no fundo o coração das coisas
doce e silente coração que as coisas
para o nemésio tinham e pró caeiro não.

21.2.78

(Vasco Graça Moura, n 1942, Portugal
in "Poesia 1993-1995", Círculo de Leitores, 2001)

sábado, agosto 27, 2005

Minibiografia

Não me quero com o tempo nem com a moda
Olho como um deus para tudo de alto
Mas zás! do motor corpo o mau ressalto
Me faz a todo o passo errar a coda.

Porque envelheço, adoeço, esqueço
Quanto a vida é gesto e amor é foda;
Diferente me concebo e só do avesso
O formato mulher se me acomoda.

E se a nave vier do fundo espaço
Cedo raptar-me, assassinar-me, cedo:
Logo me leve, subirei sem medo
À cena do mais árduo e do mais escasso.

Um poema deixo, ao retardador:
Meia palavra a bom entendedor.

(Luiza Neto Jorge, 1939-1989, Portugal
in "Poesia"
organização e prefácio de Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim, Lisboa, 2001)

Exorcismo

o sangue o suor
a água lustral
o leite do sol
retido na mama
o sangue sangrando
com o vinho
o pranto o rito
líquido o vinho
tinto no mijo
de deus no sangue
descendo na urina
subindo água
benta no sangue
o filtro do amor
filtrando o suor
um licor dividindo
o choro do pus

(Luiza Neto Jorge, 1939-1989, Portugal
in "Poesia"
organização e prefácio de Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim, Lisboa, 2001)

Metamorfose

Quando a mulher
se transformou cabra
marés anuíram
ao ciclo recente
das águas
ah
as bombas
desceram em paraquedas
antes dos homens

Esta é a revolta
a metamorfose
onde
equinócios mecânicos
abortam os filhos

Cabra só cabra
espeta
nas pernas dos pagens
os cornos alucinantes
como para ergueres dos mortos
a necessidade da vida
antes

A mulher se transformou cabra
ritual de emigração
em resposta à raiz
constante das árvores
ao grande silêncio
empastado nas letras
de imprensa

Foi quando a mulher
se fez cabra
no compasso de fúria
contra a batuta
dos chefes de orquestra
que escorrem notas
dos gritos da música

Fez-se cabra
desatenta de origens
cabra com fardo de cio
no peso das tetas
cabra bem cabra
adoçando a fome
na flor dos cardos

(Quando a cabra
voltar mulher -
- ressurreição)

(Luiza Neto Jorge, 1939-1989, Portugal
in "Poesia"
organização e prefácio de Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim, Lisboa, 2001)

A porta aporta

a porta roda ao invés da lua
a porta roda bússula enterrada ao invés dos olhos
a porta geme é um cão nocturno
a porta geme extinta na trela da noite
a porta areia
a porta caruncho pária de mar
a porta maré que vem e que vai que bate e que fecha
a porta com máscara de morte
a porta sem sorte
a porta joelho na alma das portas
a porta mulher da casa de passe
a porta manchou a manhã com o grito de porta
a porta enforcada no mastro da casa
a porta por asa
a porta roda
a porta sexo a vida toda
a porta tosca da madrugada pregos são estrelas mortas
a porta pregada
a porta leilão
a porta batente a porta aranha por coração
a porta tu
a porta eu
a porta ninguém na terra pequena
a porta roda
a porta geme
a porta facho
a porta leme

(Luiza Neto Jorge, 1939-1989, Portugal
in "Poesia"
organização e prefácio de Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim, Lisboa, 2001)

quinta-feira, agosto 11, 2005

Grito negro

Eu sou carvão !
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.

Eu sou carvão !
E tu acendes-me, patrão
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder, sim
e queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão
Tenho que arder
queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim !
Eu serei o teu carvão, patrão !

(José Craveirinha, 1922-2003, Moçambique
in "Antologia Temática de Poesia Africana 1
na noite grávida de punhais"
de Mário de Andrade
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1975)

quarta-feira, agosto 10, 2005

Mamãe

Mamãe-Terra,
venho rezar uma oração ao pé de ti.
Teu filho vem dirigir suas súplicas a Deus Nossenhor
por ele
por ti
pelos outros teus filhos - espalhados
na superfície cinzenta do teu ventre mártir,
Mamãe-Terra.

Mamãezinha,
dorme, dorme,
mas, pela Virgem Nossa Senhora,
quando te acordares
não te zangues comigo
e com os teus meninos
que se alimentam da ternura das tuas entranhas.

Mamãezinha,
eu queria dizer minha oração
mas não posso;
minha oração adormece
nos meus olhos, que choram a tua dor
de nos quereres alimentar
e não poderes.

Mamãe-Terra,
disseram-me que tu morreste
e foste sepultada numa mortalha de chuva.
O que eu chorei !

Sinto sempre tão presente no meu coração
o teu gesto de te levantares
buscando o pão para as nossas bocas de criança
e nos dirigires a consolança das tuas palavras
sempre animadoras...

Eu procurei o teu túmulo
e não o encontrei.
E depois,
na minha dor de filho angustiado,
me disseram que te haviam sepultado
numa migalha de terra
no meio do mar.

Embarquei num veleiro
e fui navegando, navegando...

Não morreste, não, Mamãezinha?
Estás apenas adormecida
para amanhã te levantares.
Amanhã, quando saíres,
eu pegarei o balaio
e irei atrás de ti,
e tu sorrirás para todo o povo
que vier pedir-te a bênção.
Tu nos deitarás a bênção.
E eu me alimentarei do teu imenso carinho...

Mamãezinha, afasta-te um bocadinho
e deixa o teu filho adormecer ao pé de ti...

(Osvaldo Alcântara, 1907-1990, Cabo Verde
in "Antologia Temática de Poesia Africana 1
na noite grávida de punhais"
de Mário de Andrade
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1975)

Poema do mar

O drama do Mar,
o desassossego do Mar,
sempre
sempre
dentro de nós!

O Mar!
cercando
prendendo as nossas Ilhas,
desgastando as rochas das nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
roncando nas areias das nossas praias,
batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...

O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!

O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais 1...

O Mar!
saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
histórias da baleia que uma vez virou a canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres,
nos portos estrangeiros...

O Mar!
dentro de nós todos,
no canto da Morna,
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente !

Este convite de toda a hora
que o Mar nos faz para a evasão !
Este desespero de querer partir
e ter que ficar !

(Jorge Barbosa, 1902-1971, Cabo Verde
in "Antologia Temática de Poesia Africana 1
na noite grávida de punhais"
de Mário de Andrade
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1975)

terça-feira, agosto 09, 2005

Meu amor da Rua Onze

Tantas juras nos trocámos,
Tantas promessas fizemos,
Tantos beijos nos roubámos,
Tantos abraços nós demos.

Meu amor da Rua Onze,
Meu amor da Rua Onze,
Já não quero
Mais mentir.

Meu amor da Rua Onze,
Meu amor da Rua Onze,
Já não quero
Mais fingir.

Era tão grande e tão belo
Nosso romance de amor
Que ainda sinto o calor
Das juras que nos trocámos.

Era tão bela, tão doce
Nossa maneira de amar
Que ainda pairam no ar
As promessas que fizemos.

Nossa maneira de amar
Era tão doida, tão louca
Qu'inda me queimam a boca
Os beijos que nos roubámos.

Tanta loucura e doidice
Tinha o nosso amor desfeito
Que ainda sinto no peito
Os abraços que nos demos.

E agora
Tudo acabou.
Terminou
Nosso romance.

Quando te vejo passar
Com o teu andar
Senhoril,
Sinto nascer

E crescer
Uma saudade infinita
Do teu corpo gentil
De escultura
Cor de bronze
Meu amor da Rua Onze.

(Aires de Almeida Santos, 1921-1992, Angola
in "Antologia Temática de Poesia Africana 1
na noite grávida de punhais"
de Mário de Andrade
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1975)

Rimance da menina da roça

A menina da roça
está no terreiro
cosendo a toalhinha
pró seu enxoval...
- «Que céu tão lindo!,
e o encanto da mata!...
Ai, tanta beleza
no cafezal...»

A menina da roça terá poesia
terá poesia nos olhos de mel?

A menina da roça
chega à janela
e na estrada branca
a vista alonga...
- «É o carro a vir?»
Não... é o bater compassado
do aço de enxadas
dos negros na tonga...

A menina da roça tem é um namoro
tem um namoro com um motorista

A menina da roça
veio à varanda
e os olhos erra
no verde à toa
- «Está ele a chegar?!»
Ah... são negros pilando
dendém para azeite
na grande canoa

(Prucutum, lá do telheiro,
vai chamar o meu amor)

A menina da roça
acorda à noite
ouviu um barulho
na escuridão
- «O carro chegou!...»
Oh... é o pulsar apressado
do seu coração

(Por que bates tão depressa, coração alucinado?
coração alucinado, espera que o dia amanheça)

- «Já viu a minina?...»
«Hem... tem cor mareia
do mburututu...»
- «E não come nem nada...»
- «E os olhos de mel
tão-se afundar
num lago azul
que faz sonhar...»
Conversam as negras
à boca apertada

(Minha dor, ninguém a saiba -
não há peito em que ela caiba)

A menina da roça
escuta dorida
a triste canção
que vem do rio.

Que vem do rio? - Que vem do peito:
baixinho, lá dentro,
chora de amor
o coração.

Menina da roça - águas do rio
saudades da fonte... desejos de amar.

(Viriato da Cruz, 1928-1973, Angola
in "Antologia Temática de Poesia Africana 1
na noite grávida de punhais"
de Mário de Andrade
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1975)

Namoro

Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com letra bonita eu disse ela tinha
um sorrir luminoso tão quente e gaiato
como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas
espalhando diamantes na fímbria do mar
e dando calor ao sumo das mangas
Sua pele macia - era sumaúma...
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo
tão rijo e tão doce - como o maboque...
Seus seios, laranjas - laranjas do Loje
seus dentes... - marfim...
Mandei-lhe essa carta
e ela disse que não.

Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou:
«Por ti sofre o meu coração»
Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
E ela o canto do NÃO dobrou

Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
pedindo rogando de joelhos no chão
pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,
me desse a ventura do seu namoro...
E ela disse que não.

levei à avó Chica, quimbanda de fama
a areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu...
E o feitiço falhou.

Esperei-a de tarde, à porta da fábrica,
ofertei-Ihe um colar e um anel e um broche,
paguei-lhe doces na calçada da Missão,
ficámos num banco do largo da Estátua,
afaguei-lhe as mãos...
falei-lhe de amor... e ela disse que não.

Andei barbudo, sujo e descalço,
como um mona-ngamba.
Procuraram por mim
«- Não viu... (ai, não viu...?) não viu Benjamim?»
E perdido me deram no morro da Samba.

Para me distrair
levaram-me ao baile do sô Januário
mas ela lá estava num canto a rir
contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário.

Tocaram uma rumba - dancei com ela
e num passo maluco voámos na sala
qual uma estrela riscando o céu!
E a malta gritou: «Ai, Benjamim!»
Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.

(Viriato da Cruz, 1928-1973, Angola
in "Antologia Temática de Poesia Africana 1
na noite grávida de punhais"
de Mário de Andrade
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1975)

quinta-feira, julho 07, 2005

Ser tudo não me basta

Não sou homem
nem mulher
nem lésbica
ou pederasta

Sou tudo

mas ser tudo
não me basta.

(Manuela Amaral, 1934-1995, Portugal
in "Amor no Feminino", Fora do Texto, 1997)

Culpa tua (ou minha)

Hoje sonhei contigo
e tive um pesadelo.

E quando acordei senti-me mal
com aquela reacção quase animal
de quem está no meio da teia
ou dentro de um novelo.

E o dia foi passando
tristemente morno,
castamente frio
num arrepio de sombras
de fantasmas mortos.

E só ao anoitecer
quando o escuro me estendeu os braços
na protecção do medo

é que eu me despertei
e percebi
que era supenor
a este amor
que um dia recusaste
E vou esquecer.

(Manuela Amaral, 1934-1995, Portugal
in "En Nome de Nada", Fora do Texto, 1996)

Remorso perdoado

Perdoa, meu amor,
o mal que te causaste

O mal que me fizeste
e não sabias.

(Manuela Amaral, 1934-1995, Portugal
in "En Nome de Nada", Fora do Texto, 1996)

domingo, julho 03, 2005

Desordem

Tapas os caminhos que vão dar a casa
Cobres os vidros das janelas
Recolhes os cães para a cozinha
Soltas os lobos que saltam as cancelas

Pões guardas atentos espiando no jardim
Madrastas nas histórias inventadas
Anjos do mal voando sem ter fim
Destróis todas as pistas que nos salvam

Depois secas a água e deitas fora o pão
Tiras a esperança
Rejeitas a matriz

E quando já só restam os sinais
Convocas devagar os vendavais

(Maria Teresa Horta, n 1937, Portugal
in "Destino", 1997)

Poema de muito amor

Ó meu amor minha raiva
meu sol posto a rubro
numa praça

minha voragem meu barco
minha vingança de mar
onde me perco e me mato

Ó suicídio Ó silêncio
Ó beber pelos teus braços
respirar a tua boca
precipício que desato

Ó corpo que sei ser meu
mas que me foge
e não toco

que voragem de dizer
que prazer que não invoco
de te pensar e morrer
de só te ter pouco a pouco

Ó ódio de bem te querer
Ó ternura de ser tua

Ó vontade de correr
contigo no meio da rua

Ó meu amor - desdizer
Ó meu crime de mentira

viagem - mito - prazer
meu interior de colina

Que grito mais rasgado se domina
que medo transformado numa espada
que casa mais secreta e mais vazia
que água mais domada e mais amarga

Minha ferida - consciência
minha loucura encontrada

como arma de gatilho
pronta a me ser disparada

Ó alegria Ó veneno
Ó ódio de me seres tudo
verdade de eu nada ser
na construção do teu mundo

Que fogo inquieto não
iludo
que certeza encontrada
não pergunto

que fuga não domino
e porque luto

que dor não domino
e que desfruto

Ó noite não somente
e também dia
Ó rio não somente
e também corpo

Ó febre não somente meu limite
mas minha invenção
e meu desgosto

Minha evasão - meu país
meu habitar muito lento

Ó meu amor meu invento
meu futuro a destruir
em negação do seu tempo

(Maria Teresa Horta, n 1937, Portugal
in "Minha Senhora de Mim", 1971)

sábado, julho 02, 2005

Fui hoje à Caixa, Marga

Fui hoje à Caixa, Marga, receber
A pensão de reforma.
Coxo e doido, Marga. Muito!
Duro é ser velho, e, então, de ossos a arder?
5 A minha tíbia engole facas.
Fui hoje à Caixa receber
O troco das pernas fracas.
E lembrei-me de ti, que eras habituée
Lá pela ordem dos trinta, dos cinquenta milhões.
10 Da formiga à cigarra:
(Iguais ocasiões)
- Que faisiez vous aux temps chaux,
Dit-elle à cette emprunteuse
.
Lembrei-me de ti com La Fontaine,
Cigarra, claro, chanteuse.
Formiga fora uma aubaine.
Marga, é tão triste o dinheiro!
Até já o ganhas, como eu,
E andaste coxa, cheia de dores
Tu que o atiravas aos punhados
Como em batalha de flores
Estás como os reformados
À espera dos directores
Mas como ainda és bonita
E há sempre um, pronto aos favores,
Vê bem o que ele te debita
Que descontos te faz
Ê provável que insista
Sabendo-te "petite amie" de um pobre pensionista
A menina bem sabe que há certas coisas que nem mesmo um aperto
(Ai, a minha peminha!)
Comucópia - corno coxo.

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)

Corisco de ilha

Corisco de ilha,
Raio celeste,
Levo donzilha
Que alva me deste.
Corusca a espada
Do Arcanjo, e nasce
Da sua folha de lume
Margarida, de que pasce
Cordeirinho ou toiro a gume
De dente como uma faca
Contra cerviz de vaca.
Tudo porém, ilha corisca,
Joga no doce, se a ela se arrisca,
E doce é o mugido,
A baba mais irisada,
O azul d'água do chão,
Poça a pata desenhada,
Recompõe a solidão
Leiteira em pura bucólica
Respeitando margaridinha
Que brota do azul eólica,
Já mulherzinha, avozinha.

Corisco de ilha,
Raio celeste,
Levo novilha
Que a pastor preste,
Pois a donzilha
A outro deste.
E é tudo festa de paus
Batidos nas pedras ermas
Ao som destes versos maus
Das minhas falas enfermas.
E bezerrada e vexame
Quando pastor de ninfas me supunhas.
Não há porém quem mais ame
As deschifradas mulheres
Mas podem faltar-me as unhas.

Ilha corisca,
Samiguelada,
Diamante que risca
A alma desolada,
Por isso te ficou o nome mau
De alma de pau,
Que só a vaqueirinha da má sorte
Resgata no ramo da vida e da morte.
Mas escolhendo-me, ilha corisca,
Sarando-me os sabugos dessangrados
Com seus unguentos Dior apomadados
Por amor aos campos e aos dragões de goela em furna,
Deles rompo como Príncipe Vingador:
Fica uma uma
Para o esquecimento
E um cálice de sangue para o último amor.

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)

Oh pedras de sangue

Oh pedras de sangue,
Oh chagas de sal,
Oh Marga do Mangue,
Palmeira letal,
Macaca de Fogo,
Minha mão no vento,
Meu amor perdido
Nos gestos do tempo.
Marga Victoriosa,
Arnedo de cinza,
Monte Escuro claro
Nas lavas mugidas
De carne sangrenta
Viático a vidas.
O lótus do Nilo
Te assanha as feridas
Que minh'alma unguenta.

A Rosa de Alexandria
Levou a minha alegria.
O relógio de Geneve
Parou à uma na neve:
Levaram-na os loucos tristes,

Descalça vai pela estrada
Marga dorida raptada
Na Suíça federada
Que só pela touca é louca.

O sequestro vai guiado
Pela baba consanguínea,
Ardem palácios à chuva:
Marga, casada mil vezes,
Ficará sempre viúva?

Olhai o Cedro do Líbano,
Manhas que na casca tem!
Na arte é religioso
Mas não dá fé a ninguém.

- Marga, foge! -
Digo-te: - Foge a tempo!
Só assim chegarás à minha choça,
Só assim ele te dá o apartamento
Mentindo-te o mais que possa.

Então, com Genevieve
Pastoreando Paris,
Dos tectos do Quai d'Orsay
Teu sangue tudo me diz.
Revenons, revenons,
La lithanie!
Mordons
La queue du licorne,
Sauvons la face en sursis
Avant que la nuit ne tombe
Et la destinée ne borne
Les chances d'envol de la colombe.


Foge, Marga! Compra vacas
Como quem salva mulheres
Com quadros impressionistas:
Juntos, na vente aux enchères
Para não darmos nas vistas.

A espada de São Miguel
Sangra ao meio da balança:
Pesaste amor contra fel
Nas tuas mãos de criança.

E chora teus francos
Que ele vende suas tintas:
Os teus bezerros estão mancos
Com pena de que me mintas.

Afinal, tudo tão simples
Em meia dúzia de versos
Como orvalho na Fajã!
Lá falámos os farrapos
Dos teus vestidos dispersos
Na cama, até de manhã.

Ouves? São os sapos, Marga,
Já há sol na telha vã
Que uma aboboreira enflora.
Eu sou o que tem a telha,
Marga, para toda vida:
Está tanto frio lá fora!
Entra, dorme, Margarida!

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)

Entregaste-me à partida

Entregaste-me à partida
Fronha da tua almofada,
Quentinha do teu cabelo,
Com sua renda comprida
E muito bem embrulhada
Como se fosse um novelo.

Claro que não foste tu
Quem se lembrou do presente
(Por modéstia, já se vê):
Fui eu, que deitei o cu
Na tua caminha, - oh!
Sem lá ter dormido, não:
Que a gente vive tão castos
Em certas ocasiões,

Que parecemos dois irmãos
Ou uns peregrinos de Santa
Que viessem de muito longe
(Eu o peregrino) e um monge
(Neste caso uma monja)
Lhe cedesse, pra repouso,
A sua própria tarimba
Ainda quente do seu hábito
E marcada do seu corpo
Suado pela cacimba.

Pois foi assim da tua fronha:
Tu ma deste, - que eu queria
Cabeça, almofada e tudo:
Mas tinha muita bagagem,
És prudente e precavida:
Por isso veio a trouxinha
Dada em segredo, à partida.

Na primeira noite, ausente,
Confesso que ma esqueci...
De resto, tu vens co a gente:
Sempre tive a sensação
De dormir ao pé de ti.

Mas hoje de manhã, na insónia,
Resolvi abrir o embrulho,
Estender o quadradinho
De pano no travesseiro,
Com uma certa cerimónia,
Sorrateiro e sem barulho,
Desdobrando, lento, o linho
Para não perder o cheiro,
Que vai das rosas ao vinho.
Ah! que não era preciso!
As violetas do entremeio
Tinham faro do teu seio
E do teu próprio juízo.

Mal o fiz, a cama, o quarto,
Nice, a França e a Itália juntas,
Tudo ficou perfumado
Daquela bomba de amor,
Como se uma margaridinha,
Oferta à Côte d'Azur
E apanhada a mil quilómetros
Ainda com o orvalho preso
Aos espinhos do guipur,
Abafasse as flores caríssimas
E influísse nos termómetros,

Fizesse as mulheres ciumentas,
Desse ao Maio mais calor,
E ao Festival do Livro
(Um pouco moche, confesso)
O best-seller do amor.

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)

O telegrama

Oh! Esta loucura Morse
Com tracinhos dos teus dedos
E pontos das tuas unhas!
A saudade se reforce
Nos eléctricos segredos
Para a matarmos melhor.

Sou tão feliz! Nem supunhas:
Sei o telegrama de cor.
Diz: "A Macaca de Fogo
Não pode passar sem ti.
Vem depressa." - Volto logo.
"Saudades de ripipi."

Mal sabia o operador,
Grafando a onomatopeia,
Que era o teu grito de amor
Chilreando veia a veia!
"Um vendaval de saudades"
("Vendaval", por vento ilhéu
Que bate vidros e grades
E arrasta o amor no escarcéu).

"Com muito amor" - continua
O cabograma contado -
E acaba dizendo "tua
Margarida", como se
O não soubesse o povoado,
O correio, o homem da rua,
O groom e eu mesmo que de
Ti sou, na Terra e na Lua.

Stop. No explicit Morse
Está "Macaca" e "ripipi"
Para que o espanto reforce
Tudo o que me vem de ti.

Agora pergunto: A cara
Do funcionário, ao guichet,
Vendo-te séria, avis rara,
De coroa e franja, até
Firmares, com anéis nos dedos,
Como às tuas Confissões,
Todos aqueles segredos
Contra escudos e tostões...

Oh, bendito seja o Fontes,
(Teu tio Hintze, já se vê...)
Que lançaram estas pontes
De pressa e amor - C. T. T.!

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)

A araucária

Tu és a Araucária Excelsa,
A Criptoméria ]apónica,
Minha Hidrângea Hortênsia,
Celsa Rosa de Abril, água tónica.

Araucária, és gigantesca
Apesar de pequenina,
Com andares de amor, e fresca
Como a relva e a bonina.

Como criptoméria, o críptico
Da natureza que tens
É dares-te íntegra no tríptico
De Graças em que me vens

Pois vales por três ou trinta
Na sã multiplicação
De vinte mulheres de tinta
Que escreve o teu coração.

Como hidrângea és toda água
De sede e lágrimas junta,
Minh'alma contigo é a mágoa
Que me dá tanta pergunta

Que te faço do passado,
Com que te aflijo de dia
Por tanto engano amargado
No copo desta alegria.

Vamos beber água quente
Nas Fumas do nosso amor
Para esquecer tanta gente
Empenhada em tua dor:

Jacinto, Cravo, Narciso,
Adónis de Beladona:
Mas sempre esse alto juízo
De Victória Régia à tona,

Que, pairando misteriosa
Nas podridões do paul,
Lá se alarga a branco e rosa,
Cá me cobre a rubro e azul.

És como a junça e a canteira
Que veste os montes da Ilha,
Minha amada verdadeira
Podendo ser minha filha.

És o vegetal de pedra
E a lava da incandescência,
A bomba de amor que medra
No que parecia indecência

E afinal é fogo verde
No "Bléchnum Brasiliense",
Fumarola que se perde
Antes que em mim se condense.

És a flor do Monte Escuro,
Das azáleas a rainha,
Amor de animal te juro
Pela barba do Padinha.

É isto acaso a aridez
Da rubra flor do deserto
Que, chorando em mim, te crês
Temendo teres-me tão perto?

Não vá crestar-me teu beijo,
Ser teu amor meu desvairo,
Criar cinza em meu desejo,
E algum corisco no Cairo.

És o vegetal de rocha,
A maçã de pedra pome,
A cordeirinha e a cabrocha
Do leite da minha fome.

Alcalina para o mouro,
Em tudo constante e vária,
És a minha hortense de ouro
E, à minha porta, araucária.

A margarida, tomada
Por bolota de suíno,
Brilha firme e recatada
No mar largo ou no intestino

E sobe no verde amargo,
Bandeira ao vento contrária,
Do mar largo, do mar largo,
Como ano a ano a araucária.

Tenho na pedra da porta
O cântaro de chorar
Minha margarida morta,
Minha araucária solar,

Torre verde, cruz de estrada,
Vela e leiva de ananás,
Lomba negra, unha cravada
Em pão ou amor, tanto faz.

Araucária ramo a ramo
(Teimo na araucária de ilha
E faço da mulher que amo
Meu anel e gargantilha).

Plantei-a nos versos toda,
Copou na minha linguagem:
Já que não tivemos boda
Tenhamos esta coragem

De trepadeira à janela,
Uma araucária no chão,
E saibam todos que é ela
A araucária e a paixão,

Ela a noite, ela o sossego,
Ela o vento e o ramalhar
Das árvores que dão ao rego
A semente e o esterroar,

Ela a coroa de marquesa
No rompante de leão,
Com passinhos de princesa
De sinople castelão,

Ela toda esquartelada
De sonho e de fantasia,
Fingindo de loba uivada
Quando é pomba de alegria.

Ela, meu frágil escudo
Nas unhas de vermelhão
Que vão rasgando veludo,
Minha pele rasgando vão

Até me levar à boca
Com gestos de sua mão
A minha alma, que ainda é pouca
Para lhe servir de pão.

E enfim, na dupla refrega
Chilreando ante o meu pasmo,
Como os pássaros se entrega
E ruge de amor no orgasmo.

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)