domingo, setembro 25, 2005

Meia noite na quitanda

- Cem reis de jindungo
Sá Domingas

o sol
entrega Sá Domingas à lua
nas quitandas dos musseques

E a quitandeira esperando

- Cinquenta reis de tomate
três tostões de castanha de cajú
um doce de côco
Sá Domingas

Ela vende na quitanda à meia noite
que o filho
está na estrada
precisa de cem mil reis
para pagar o imposto

o sol deixa Sá Domingas
na quitanda
e ela deixa o luar

Um tostão
dois tostões
três tostões
que o coração de Sá Domingas
sofre mais do que o corpo na quitanda.

(Agostinho Neto, 1922-1979, Angola
in "Poemas", Cadernos Capricórnio 28/29
Opal, Lobito, 1975)

Caminho do mato

Caminho do mato
caminho da gente
gente cansada
Oóó - oh!

Caminho do mato
caminho do soba
soba grande
Oóó - oh!

Caminho do mato
caminho de Lemba
Lemba formosa
Oóó - oh!

Caminho do mato
caminho do amor
amor do soba
Oóó - oh!

Caminho do mato
caminho do amor
do amor de Lemba
Oóó - oh!

Caminho do mato
caminho das flores
flores do amor.

(Agostinho Neto, 1922-1979, Angola
in "Poemas", Cadernos Capricórnio 28/29
Opal, Lobito, 1975)

Quitandeira

A quitanda
Muito sol
a quitandeira à sombra
da mulemba.

- Laranja, minha senhora
laranja boa!

A luz brinca na cidade
de claros e escuros
o seu quente jogo
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.

A quitandeira
que vende fruta
vende-se:

- Minha senhora
Laranja, laranjinha boa!

Compra laranjas doces
Compra-me também o amargo
desta tortura:
a vida a rastejar.

Compra-me a infância de espírito
este botão de rosa
que não abriu;
princípio impelido ainda para um início.

Ah!
Laranja, minha scnhora!
Esgotaram-se os sorrisos
Com que chorava
Eu já não choro.

E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas,
enterrado nas raças
e o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem;
como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas,
à beleza das ruas asfaltadas,
de prédios de várias andares
e à comodidade de senhores ricos.

A alegria dispersa por cidades

e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.

Aí vào as laranjas
como eu me ofereci ao alcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.

Tudo tenho dado
até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-a aos poetas.

Agora,
vendo-me eu própria.
- Compra laranjas,
minha senhora!

Leva-me para as quitandas da Vida.
O meu preço é único:
- sangue.

- Laranja, minha senhora
laranja boa!

Talvez vendendo-me
eu me possuo.

- Compra laranjas!

(Agostinho Neto, 1922-1979, Angola
in "Poemas", Cadernos Capricórnio 28/29
Opal, Lobito, 1975)

Poesia africana

Lá no horizonte
o fogo
e as silhuetas escuras dos imbondeiros
de braças erguidos.
Na ar o cheiro verde das palmeiras queimadas.

Poesia africana.

Na estrada
a fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira.
No quarto
a mulatinha de olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó de arroz.
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas.
Na cama
o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa.

Na céu o reflexo
do fogo
e as silhuetas dos negras batucando
de braços erguidos.
Na ar a melodia quente das marimbas.

Poesia africana.

E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem insone.

Os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.

(Agostinho Neto, 1922-1979, Angola
in "Poemas", Cadernos Capricórnio 28/29
Opal, Lobito, 1975)

Romance de Dionisos duriense

Dionisos do Douro!
Pêlos no púbis como um homem,
Calos nas mãos ossudas!
E bêbado de mosto e de alegria
A luz da negra noite e do claro dia!

MIGUEL TORGA



Do Marão a Montemuro
Voa uma águia de vinho.
Agosto já está maduro
E a uva rasga caminho.
Serra de cimo insubmisso,
Altos que ninguém agarra,
Verdejante os verga o tirso
Do deus de pénis e parra.
Com bucólica de cabras,
Lá nas ribas mais acima,
Em geios que Baco cava
Verdor de sol é vindima.
Enfrascados nas videiras
Correm cantos sem cabrestos;
Submissos às garrafeiras
Caem os cachos nos cestos.
A noite esfolha cantigas
E na cheia do bailar
Peludas pernas antigas
Sangram o bago no lagar.
Lume em chão de rosmaninho
Vareja a chula rabela;
Dança que se funda em vinho
Enleia o ar que a rodeia:
Onde o deus ergue o seu corno
Broncos corpos ganham asas,
Roda que roda e em torno
Dos corpos giram as casas.
Rio Douro borrachão!
Nas tuas águas tem brio:
A vinha está com pulgão
E vai lavar-se no rio.
De Baco a flauta e o tambor
Rompam que a praga não vinga!
Setembro vindimador
Não há-de negar a pinga.
Meninas de virgos quedos
Venha vinho até tombar!
Se tombardes nos vinhedos
De Baco haveis de emprenhar.
O sol que espincha das uvas
Beba a velha até cair!
O vinho em carnes viúvas
Rosas rubras faz florir.
Ó justiça da parreira
Que se cumpre nas adegas!
No comum da bebedeira
Rico e pobre são colegas.
Dívidas, dores, enxaquecas,
Escravos do mundo credor!
Despejem-me essas canecas
Que o vinho é bom pagador.
Culpas de bocas atadas!,
Esvaziem-me essa malga:
No vinho está perdoada
Pena que a alma nos salga.
Soldado que vais para a guerra,
No vinho o furor atarda:
O deus que dá a taberna,
À ira tira a espingarda.
Corra o beijo na orgia!
Àquele que o agarrar
A morte perdoa o dia
Em que o devia levar.
Liberal o deus bacante
Dá no vinho o que é preciso:
O amor que inspira o instante
De apurar o paraíso.
Dionisos duriense
Vinhateiro das escarpas!
Não há ferida que não pense
O bago que à pedra sacas.
O vinho é sangue de Cristo,
Dizem vozes, mas no agro
Onde a uva rasga o xisto,
Vinho é o sémen de Baco.

(Natália Correia, 1923-1993, Portugal
in "O Armistício"
Publicações D. Quixote, Lisboa, 1985)

No Templo de Florbela-Diana, a Castradora

À noite, em erma torre, um tigre aos pés,
Penteia-se Florbela. Ardentes velas
Citam-lhe a alma gémea do maltês
Coberta da poeira das estrelas.

O templo a chama. Venérea e mediúnica
Vai ao serviço em que a tem a lua:
Corça da deusa que lhe pede a túnica,
O luar a descasca e fica nua.

Sua carne de murta langorosa
Espalha na noite espasmos perfumados.
Nessa nuvem lunática e cheirosa
Castram-se efebos em eiras e montados.

E da mutilação, sangrando a oferenda,
Levam-na, castos, ao templo de Diana
Onde em veados os transforma a lenda
De Florbela, a Artemisa alentejana.

(Natália Correia, 1923-1993, Portugal
in "O Armistício"
Publicações D. Quixote, Lisboa, 1985)