segunda-feira, abril 11, 2005

Antes que o mundo acabe

Antes que o mundo acabe, Túlio,
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores

Antes que o mundo se acabe
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.

(Hilda Hilst, 1930-2004, Brasil
in "Poesia: 1959-1979" - São Paulo: Quíron; Brasília: INL, 1980)

Descansa

Descansa.
O Homem já se fez
O escuro cego raivoso animal
Que pretendias.

(Hilda Hilst, 1930-2004, Brasil
in "Amavisse", Massao Ohno, Editor, 1989, SP)

O escritor e seus múltiplos

O escritor e seus múltiplos vem vos dizer adeus.
Tentou na palavra o extremo-tudo
E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância
Foi velada: obscura na teia da poesia e da loucura.
A juventude apenas una lauda de lascívia, de frêmito
Tempo-Nada na página.
Depois, transgressor metalescente de percursos
Colou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra.
Poupem-no o desperdício de explicar o ato de brincar.
A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo.
O Caderno Rosa é apenas resíduo de um "Potlatch".
E hoje, repetindo Bataille:
"Sinto-me livre para fracassar".

(Hilda Hilst, 1930-2004, Brasil
in "Amavisse", Massa Ohno, Editor, 1989, SP)

Olhando

Olhando o meu passeio
Há um louco sobre o muro
Balançando os pés.
Mostra-me o peito estufado de pêlos
E entre as coxas um lixo de papéis:
— Procura Deus, senhora? Procura Deus?

E simétrico de zelos, balouçante
Dobra-se num salto e desnuda o traseiro.

(Hilda Hilst, 1930-2004, Brasil
in "Amavisse", Massao Ohno, Editor, 1989, SP)

sábado, abril 02, 2005

Gravana

A Alda Espírito Santo

Na nossa terra, amiga, há um tempo
de silêncio e caules ressequidos

Chega com metacarpos definhados
quando na úbua desfalece a trepadeira

Entra com o bafo poeirento
rarefeitas as unhas, candrezados os ramos
e ulula de mansinho nos bananais
como um melancólico aviso

É um tempo de folhas sem orvalho e mem-lôfi
de pagauês doridos, carentes de leite
de soturna claridade ao pôr do sol

A fria brisa nos diz que esse tempo virá

E cobertas de pó
ficarão as hastes do pilincano
imoladas ao hálito da terra

Será triste o rio e seu nome
na lonjura do vági

mortas estarão as casas e suas janelas
morto o suim-suim e seu canto
morto o macucú e a ubaga velha

A pele de pitangueiras e salambás beberá
das frutas torrenciais a lembrança
porque o luchan estará morto
amiga

Mas sobre a pedra e o fogo
tua voz de imbondeiro crescerá do barro
para resgatar a praça em nova festa
para ressuscitar o povo e sua gesta.

(Conceição Lima, n 1961, S. Tomé e Príncipe
in "O Útero da Casa", Editorial Caminho, 2004, Lisboa)

Afroinsularidade

Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações

engenhos enferrujados proas sem alento
nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras

Aqui aportaram vindos do Norte
por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e piratas
negreiros ladrões contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos também
e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas

Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas

E nas roças ficaram pegadas vivas
como cicatrizes - cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.

E nas ilhas ficaram
incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas e capelas
para mil quilómetros quadrados
e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência palaciana da ússua
o aroma do alho e do zêtê d' óchi
no tempi e na ubaga téla
e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
e o perfume do alecrim
e do mlajincon nos quintais dos luchans

E aos relógios insulares se fundiram
os espectros - ferramentas do império
numa estrutura de ambíguas claridades
e seculares condimentos
santos padroeiros e fortalezas derrubadas
vinhos baratos e auroras partilhadas

Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.

(Conceição Lima, n 1961, S. Tomé e Príncipe
in "O Útero da Casa", Editorial Caminho, 2004, Lisboa)

Daimonde Jones

Nas minas da África do Sul
seu nome ronga ou xope ou xangane
ficou sepultado
A sua sonoridade é hoje despojo irrelevante
Na cruel ressurreição chamaram-lhe Diamond

Daimond Jones ê!
Daimooooonde!

Este livro obsceno que diverte a miudagem
tem a idade das roças de cacau na ilha de São Tomé

Não reside em Santa Margarida nem em Porto Alegre
nem na Aldeia Murça nem em Água Izé
O coração da cidade o acolhe e o repele

Bebe os tostões que jardina
e escarra impropérios enquanto jardina
este esquivo transeunte, vacilante hóspede
das esquinas de São Tomé

Não amaldiçoa o sistema que lhe extorquiu
a linha vertebral, o nome, o caminho do Oriente
Guarda intactas velhas mesuras
as mesmas distraídas esmolas
nos bolsos de um grotesco ex-fato de ministro

Sabe engatilhar a palavra pat'rãão quando tem fome

(Conceição Lima, n 1961, S. Tomé e Príncipe
in "O Útero da Casa", Editorial Caminho, 2004, Lisboa)