terça-feira, agosto 30, 2005

lâmpada votiva

1. teve lenta agonia a minha mãe

teve lenta agonia a minha mãe:
seu ser tomou-se um puro sofrimento
e a sua voz apenas um lamento
sombrio e lancinante. mas ninguém

podia fazer nada. era novembro,
levou-a o sol da tarde quando a face
lhe serenou. foi como se acordasse
outra espessura dela em mim. relembro

sombras e risos, coisas pequenas, nadas,
e horas graves da infância e idade adulta
que este silêncio oculta e desoculta
nessas pobres feições desfiguradas.

quanta canção perdida se procura,
quanta encontrada em lágrimas murmura.


2. e não queria ser vista e foi envolta

e não queria ser vista e foi envolta
num lençol branco em suas dobras leves.
pus junto dela algumas rosas breves
e a lembrança represa ficou solta

e foi à desfilada. de repente,
a minha mãe já não estava morta:
era o vulto que à noite se recorta
na luz do corredor, se está doente

algum de nós, a mão que pousa e traz
algum sossego à fronte, a voz que chama
para o almoço, ou nos tira da cama,
quem nos trata das roupas, ou nos faz

bolos de anos e as malas, na partida,
e a quem a voz tremia à despedida.


3. agora deu-se à terra o que é da terra

agora deu-se à terra o que é da terra
e as flores amontoam-se em sinal
de ser fugaz a vida, sobre a cal.
e enquanto cada dia desaferra,

com seu sopro bravio virão ventos
e as gaivotas, levando-lhes outras vozes,
uivos do mar, pios, metamorfoses.
nada ela escutará nesses momentos.

haverá fumo e fogo, deslembranças
ecos, recordações, nuvens, ruídos,
outros cortejos tristes, recolhidos,
ali por perto hão-de brincar crianças

num jogo descuidado. um grupo vence-o.
mas fica a minha mãe posta em silêncio.


4. agora donne e vai ficar assim

agora dorme e vai ficar assim,
imóvel e coberta. já regressa
o carro que avançava tão depressa
na estrada por que vou e por que vim

às tantas da manhã. e tresnoitados
meus irmãos aguardavam-me à chegada,
sem esperança ou alegria, sem mais nada,
senão minutos tensos e contados.

depois os rituais, o respirar
tão a custo, os membros que se arqueiam
e distendem, e os vultos que rodeiam
a muda sombra vindo devagar.

beijei-lhe a fronte e fiz-lhe um leve afago:
do pouco que levei, tudo o que trago.


5. poderá ter morrido. ressuscita

poderá ter morrido. ressuscita
neste lugar humano, pobre fio
de água verbal que vai a medo, hesita,
e teme desmedir-se como um rio.

e muita coisa nele se derrama,
dita e não dita, pressentida, densas
aluviões, emaranhada trama
de obscuras raízes e presenças.

virão dias, semanas, meses, anos,
e os ciclos dos astros indiferentes,
mover-se-ão na mesma os oceanos
e as placas que sustentam continentes.

mola do mundo, o coração aviva
a chama desta lâmpada votiva.

(Vasco Graça Moura, n 1942, Portugal
in "Poesia 1993-1995", Círculo de Leitores, 2001)

blues da morte de amor

já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida.
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.

a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.

há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurei, a ver fugir a escala
do clarinete: - morrer ou não morrer, darling, ah, sim.

(Vasco Graça Moura, n 1942, Portugal
in "Poesia 1993-1995", Círculo de Leitores, 2001)

presente do indicativo

entro na cozinha. ela está no meio dos legumes,
lava e enxuga folhas tenras de alface, endívias
de oblonga contextura, corta a cebola às
rodelas, pica um ramo de coentros,
hesita um pouco sobre o roquefort, é certeira no vinagre e no sal,

e prudente no azeite. o ovo cozido espera a sua vez e a
saladeira aguarda na mesa junto aos azulejos brancos.
ela procura os talheres de madeira na gaveta,
pede-me qualquer coisa, a lâmina reluz sobre a tábua, perto do pão.
a preparação da salada requer vários gestos precisos

e uma poética discreta nos brilhos frisados, nos
paladares. pela janela chegam os ruídos da rua,
campainhas de bicicleta, ressaltos de uma bola.
o cão dormita no sofá. uns versos populares comparam
os olhos dela a azeitonas pretas.

(Vasco Graça Moura, n 1942, Portugal
in "Poesia 1993-1995", Círculo de Leitores, 2001)

carta à mulher amada sobre a morte de vitorino nemésio

quando ontem recebi o seu recado
comi uma laranja em memória do nemésio
imagino os amigos o david ainda fresco
o irmão que morreu e agora esta notícia
e cuido em si em mim enquanto penso nele
tivemos no entanto alguma sorte: ele não era
«o nosso querido amigo» mas porém
a mais íntima voz das respeitadas

comi uma laranja achei-a dulce et utile
própria da circunstância horaciana
de haver augusto em século que o não é
salvo na poesia muito teoricamente
(acha que é de mudar o meu registo?)
ele é agora chamazinha em deus
que pra ele existia e para mim não
mas sempre fui voraz, meditativo

ah rapsodo como a palavra transfigura a morte
e da experiência alheia se apropria
na poeira das coisas o teclado
tange a cinza possível e entre dentes vou
mordendo a polpa ao fruto e me adequo
com certa gravidade aos detritos do ofício
aquilo que se rasga emenda se rasura
mesmo se improvisando num terreiro

«não se pensa a morte: dá-se» escreve o que ontem
atingiu seu limite. lembra-se? nós falámos
a esse respeito dentro dum automóvel
foi salvo erro depois do alto da lixa
e eu disse tanta asneira que o nemésio
até cabia nela por ser bom
e perceber como eu guiava amando-a
falando assim por lhe arrastar a asa

contei-lhe do poema da colóquio
de ele i falar na vulva e sobre a pedra
de canto e de recanto eros rejuvenesce
os que toca non eos vult perdere
nec prius dementat e lhes arroja
as vogais prometidas a laranja
outro mandava dançá-la às raparigas
e destas se comovia vitorino

disso estou certo quanto encantamento
de poder as palavras transformar
em carícias penugens vice-versa
e contudo o seu porte era modesto
todo interior o ofício bafo humilde
de aparelhar por dentro seu tutano
e quanto corpo fino e flavo atravessou
decerto aqueles óculos (cabrinhas que ele teve)

nem sei porquê escrevo estas oitavas
as crianças vêem televisão eu penso em si
talvez escute o requiem de fauré
tão íntimo e prosaico à vida do nemésio
escrito para as almas nada feito
prõs rituais da morte pompas fúnebres
das diferenças de classe ou de estatuto
se eu falasse de hölderlin do jovem hegel

mas falo para si com gravidade
de nisto tudo estar a amá-la mais
como se querendo compensar a perda
que tão egoistamente sinto do nemésio
que era autor meu de tê-lo tido um pouco
sempre ali disponível pra relê-lo
onde inda está o bicho harmonioso
mas tem o bicho humano tais remorsos

porque me lembra alguém desta família
que eu vi morrer no hospital do carmo
e esse verso do sena que me acode
«de morte natural nunca ninguém morreu»?
e hoje não me faz falta nenhuma essa pessoa
salvo a de então eu ter-me comovido
eram os dezassete anos liceais
lirismo juvenil inda familiar

e se isto é melancólico como então se eu
lhe disser que me sinto hoje neste momento
trisavô bisavô do vitorino?
que me vai perguntar ou responder?
pode haver tanta coisa inesperada
e tanta surpreendida mas sei duma
que lha digo em directo meu amor
você pode calar mas não vai rir

e acho que devia estar aqui
semicerrando os olhos estirando
o seu próprio embaraço acolhedor
das minhas confusões e o corpo onde
quando me envolvo não penso nestas coisas
(nem queria regressar de humedecidos
meandros selva oscura conhecimento
ah sim conhecimento é a palavra)

tudo isto pra dizer-lhe meu amor
que é também amor esta serena
evocação da morte junto a si
onde o tempo não passa e onde passa
e onde às vezes parecemos conseguir
tocar no fundo o coração das coisas
doce e silente coração que as coisas
para o nemésio tinham e pró caeiro não.

21.2.78

(Vasco Graça Moura, n 1942, Portugal
in "Poesia 1993-1995", Círculo de Leitores, 2001)

sábado, agosto 27, 2005

Minibiografia

Não me quero com o tempo nem com a moda
Olho como um deus para tudo de alto
Mas zás! do motor corpo o mau ressalto
Me faz a todo o passo errar a coda.

Porque envelheço, adoeço, esqueço
Quanto a vida é gesto e amor é foda;
Diferente me concebo e só do avesso
O formato mulher se me acomoda.

E se a nave vier do fundo espaço
Cedo raptar-me, assassinar-me, cedo:
Logo me leve, subirei sem medo
À cena do mais árduo e do mais escasso.

Um poema deixo, ao retardador:
Meia palavra a bom entendedor.

(Luiza Neto Jorge, 1939-1989, Portugal
in "Poesia"
organização e prefácio de Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim, Lisboa, 2001)

Exorcismo

o sangue o suor
a água lustral
o leite do sol
retido na mama
o sangue sangrando
com o vinho
o pranto o rito
líquido o vinho
tinto no mijo
de deus no sangue
descendo na urina
subindo água
benta no sangue
o filtro do amor
filtrando o suor
um licor dividindo
o choro do pus

(Luiza Neto Jorge, 1939-1989, Portugal
in "Poesia"
organização e prefácio de Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim, Lisboa, 2001)

Metamorfose

Quando a mulher
se transformou cabra
marés anuíram
ao ciclo recente
das águas
ah
as bombas
desceram em paraquedas
antes dos homens

Esta é a revolta
a metamorfose
onde
equinócios mecânicos
abortam os filhos

Cabra só cabra
espeta
nas pernas dos pagens
os cornos alucinantes
como para ergueres dos mortos
a necessidade da vida
antes

A mulher se transformou cabra
ritual de emigração
em resposta à raiz
constante das árvores
ao grande silêncio
empastado nas letras
de imprensa

Foi quando a mulher
se fez cabra
no compasso de fúria
contra a batuta
dos chefes de orquestra
que escorrem notas
dos gritos da música

Fez-se cabra
desatenta de origens
cabra com fardo de cio
no peso das tetas
cabra bem cabra
adoçando a fome
na flor dos cardos

(Quando a cabra
voltar mulher -
- ressurreição)

(Luiza Neto Jorge, 1939-1989, Portugal
in "Poesia"
organização e prefácio de Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim, Lisboa, 2001)

A porta aporta

a porta roda ao invés da lua
a porta roda bússula enterrada ao invés dos olhos
a porta geme é um cão nocturno
a porta geme extinta na trela da noite
a porta areia
a porta caruncho pária de mar
a porta maré que vem e que vai que bate e que fecha
a porta com máscara de morte
a porta sem sorte
a porta joelho na alma das portas
a porta mulher da casa de passe
a porta manchou a manhã com o grito de porta
a porta enforcada no mastro da casa
a porta por asa
a porta roda
a porta sexo a vida toda
a porta tosca da madrugada pregos são estrelas mortas
a porta pregada
a porta leilão
a porta batente a porta aranha por coração
a porta tu
a porta eu
a porta ninguém na terra pequena
a porta roda
a porta geme
a porta facho
a porta leme

(Luiza Neto Jorge, 1939-1989, Portugal
in "Poesia"
organização e prefácio de Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim, Lisboa, 2001)

quinta-feira, agosto 11, 2005

Grito negro

Eu sou carvão !
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.

Eu sou carvão !
E tu acendes-me, patrão
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder, sim
e queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão
Tenho que arder
queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim !
Eu serei o teu carvão, patrão !

(José Craveirinha, 1922-2003, Moçambique
in "Antologia Temática de Poesia Africana 1
na noite grávida de punhais"
de Mário de Andrade
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1975)

quarta-feira, agosto 10, 2005

Mamãe

Mamãe-Terra,
venho rezar uma oração ao pé de ti.
Teu filho vem dirigir suas súplicas a Deus Nossenhor
por ele
por ti
pelos outros teus filhos - espalhados
na superfície cinzenta do teu ventre mártir,
Mamãe-Terra.

Mamãezinha,
dorme, dorme,
mas, pela Virgem Nossa Senhora,
quando te acordares
não te zangues comigo
e com os teus meninos
que se alimentam da ternura das tuas entranhas.

Mamãezinha,
eu queria dizer minha oração
mas não posso;
minha oração adormece
nos meus olhos, que choram a tua dor
de nos quereres alimentar
e não poderes.

Mamãe-Terra,
disseram-me que tu morreste
e foste sepultada numa mortalha de chuva.
O que eu chorei !

Sinto sempre tão presente no meu coração
o teu gesto de te levantares
buscando o pão para as nossas bocas de criança
e nos dirigires a consolança das tuas palavras
sempre animadoras...

Eu procurei o teu túmulo
e não o encontrei.
E depois,
na minha dor de filho angustiado,
me disseram que te haviam sepultado
numa migalha de terra
no meio do mar.

Embarquei num veleiro
e fui navegando, navegando...

Não morreste, não, Mamãezinha?
Estás apenas adormecida
para amanhã te levantares.
Amanhã, quando saíres,
eu pegarei o balaio
e irei atrás de ti,
e tu sorrirás para todo o povo
que vier pedir-te a bênção.
Tu nos deitarás a bênção.
E eu me alimentarei do teu imenso carinho...

Mamãezinha, afasta-te um bocadinho
e deixa o teu filho adormecer ao pé de ti...

(Osvaldo Alcântara, 1907-1990, Cabo Verde
in "Antologia Temática de Poesia Africana 1
na noite grávida de punhais"
de Mário de Andrade
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1975)

Poema do mar

O drama do Mar,
o desassossego do Mar,
sempre
sempre
dentro de nós!

O Mar!
cercando
prendendo as nossas Ilhas,
desgastando as rochas das nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
roncando nas areias das nossas praias,
batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...

O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!

O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais 1...

O Mar!
saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
histórias da baleia que uma vez virou a canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres,
nos portos estrangeiros...

O Mar!
dentro de nós todos,
no canto da Morna,
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente !

Este convite de toda a hora
que o Mar nos faz para a evasão !
Este desespero de querer partir
e ter que ficar !

(Jorge Barbosa, 1902-1971, Cabo Verde
in "Antologia Temática de Poesia Africana 1
na noite grávida de punhais"
de Mário de Andrade
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1975)

terça-feira, agosto 09, 2005

Meu amor da Rua Onze

Tantas juras nos trocámos,
Tantas promessas fizemos,
Tantos beijos nos roubámos,
Tantos abraços nós demos.

Meu amor da Rua Onze,
Meu amor da Rua Onze,
Já não quero
Mais mentir.

Meu amor da Rua Onze,
Meu amor da Rua Onze,
Já não quero
Mais fingir.

Era tão grande e tão belo
Nosso romance de amor
Que ainda sinto o calor
Das juras que nos trocámos.

Era tão bela, tão doce
Nossa maneira de amar
Que ainda pairam no ar
As promessas que fizemos.

Nossa maneira de amar
Era tão doida, tão louca
Qu'inda me queimam a boca
Os beijos que nos roubámos.

Tanta loucura e doidice
Tinha o nosso amor desfeito
Que ainda sinto no peito
Os abraços que nos demos.

E agora
Tudo acabou.
Terminou
Nosso romance.

Quando te vejo passar
Com o teu andar
Senhoril,
Sinto nascer

E crescer
Uma saudade infinita
Do teu corpo gentil
De escultura
Cor de bronze
Meu amor da Rua Onze.

(Aires de Almeida Santos, 1921-1992, Angola
in "Antologia Temática de Poesia Africana 1
na noite grávida de punhais"
de Mário de Andrade
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1975)

Rimance da menina da roça

A menina da roça
está no terreiro
cosendo a toalhinha
pró seu enxoval...
- «Que céu tão lindo!,
e o encanto da mata!...
Ai, tanta beleza
no cafezal...»

A menina da roça terá poesia
terá poesia nos olhos de mel?

A menina da roça
chega à janela
e na estrada branca
a vista alonga...
- «É o carro a vir?»
Não... é o bater compassado
do aço de enxadas
dos negros na tonga...

A menina da roça tem é um namoro
tem um namoro com um motorista

A menina da roça
veio à varanda
e os olhos erra
no verde à toa
- «Está ele a chegar?!»
Ah... são negros pilando
dendém para azeite
na grande canoa

(Prucutum, lá do telheiro,
vai chamar o meu amor)

A menina da roça
acorda à noite
ouviu um barulho
na escuridão
- «O carro chegou!...»
Oh... é o pulsar apressado
do seu coração

(Por que bates tão depressa, coração alucinado?
coração alucinado, espera que o dia amanheça)

- «Já viu a minina?...»
«Hem... tem cor mareia
do mburututu...»
- «E não come nem nada...»
- «E os olhos de mel
tão-se afundar
num lago azul
que faz sonhar...»
Conversam as negras
à boca apertada

(Minha dor, ninguém a saiba -
não há peito em que ela caiba)

A menina da roça
escuta dorida
a triste canção
que vem do rio.

Que vem do rio? - Que vem do peito:
baixinho, lá dentro,
chora de amor
o coração.

Menina da roça - águas do rio
saudades da fonte... desejos de amar.

(Viriato da Cruz, 1928-1973, Angola
in "Antologia Temática de Poesia Africana 1
na noite grávida de punhais"
de Mário de Andrade
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1975)

Namoro

Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com letra bonita eu disse ela tinha
um sorrir luminoso tão quente e gaiato
como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas
espalhando diamantes na fímbria do mar
e dando calor ao sumo das mangas
Sua pele macia - era sumaúma...
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo
tão rijo e tão doce - como o maboque...
Seus seios, laranjas - laranjas do Loje
seus dentes... - marfim...
Mandei-lhe essa carta
e ela disse que não.

Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou:
«Por ti sofre o meu coração»
Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
E ela o canto do NÃO dobrou

Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
pedindo rogando de joelhos no chão
pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,
me desse a ventura do seu namoro...
E ela disse que não.

levei à avó Chica, quimbanda de fama
a areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu...
E o feitiço falhou.

Esperei-a de tarde, à porta da fábrica,
ofertei-Ihe um colar e um anel e um broche,
paguei-lhe doces na calçada da Missão,
ficámos num banco do largo da Estátua,
afaguei-lhe as mãos...
falei-lhe de amor... e ela disse que não.

Andei barbudo, sujo e descalço,
como um mona-ngamba.
Procuraram por mim
«- Não viu... (ai, não viu...?) não viu Benjamim?»
E perdido me deram no morro da Samba.

Para me distrair
levaram-me ao baile do sô Januário
mas ela lá estava num canto a rir
contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário.

Tocaram uma rumba - dancei com ela
e num passo maluco voámos na sala
qual uma estrela riscando o céu!
E a malta gritou: «Ai, Benjamim!»
Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim.

(Viriato da Cruz, 1928-1973, Angola
in "Antologia Temática de Poesia Africana 1
na noite grávida de punhais"
de Mário de Andrade
Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1975)