quinta-feira, julho 07, 2005

Ser tudo não me basta

Não sou homem
nem mulher
nem lésbica
ou pederasta

Sou tudo

mas ser tudo
não me basta.

(Manuela Amaral, 1934-1995, Portugal
in "Amor no Feminino", Fora do Texto, 1997)

Culpa tua (ou minha)

Hoje sonhei contigo
e tive um pesadelo.

E quando acordei senti-me mal
com aquela reacção quase animal
de quem está no meio da teia
ou dentro de um novelo.

E o dia foi passando
tristemente morno,
castamente frio
num arrepio de sombras
de fantasmas mortos.

E só ao anoitecer
quando o escuro me estendeu os braços
na protecção do medo

é que eu me despertei
e percebi
que era supenor
a este amor
que um dia recusaste
E vou esquecer.

(Manuela Amaral, 1934-1995, Portugal
in "En Nome de Nada", Fora do Texto, 1996)

Remorso perdoado

Perdoa, meu amor,
o mal que te causaste

O mal que me fizeste
e não sabias.

(Manuela Amaral, 1934-1995, Portugal
in "En Nome de Nada", Fora do Texto, 1996)

domingo, julho 03, 2005

Desordem

Tapas os caminhos que vão dar a casa
Cobres os vidros das janelas
Recolhes os cães para a cozinha
Soltas os lobos que saltam as cancelas

Pões guardas atentos espiando no jardim
Madrastas nas histórias inventadas
Anjos do mal voando sem ter fim
Destróis todas as pistas que nos salvam

Depois secas a água e deitas fora o pão
Tiras a esperança
Rejeitas a matriz

E quando já só restam os sinais
Convocas devagar os vendavais

(Maria Teresa Horta, n 1937, Portugal
in "Destino", 1997)

Poema de muito amor

Ó meu amor minha raiva
meu sol posto a rubro
numa praça

minha voragem meu barco
minha vingança de mar
onde me perco e me mato

Ó suicídio Ó silêncio
Ó beber pelos teus braços
respirar a tua boca
precipício que desato

Ó corpo que sei ser meu
mas que me foge
e não toco

que voragem de dizer
que prazer que não invoco
de te pensar e morrer
de só te ter pouco a pouco

Ó ódio de bem te querer
Ó ternura de ser tua

Ó vontade de correr
contigo no meio da rua

Ó meu amor - desdizer
Ó meu crime de mentira

viagem - mito - prazer
meu interior de colina

Que grito mais rasgado se domina
que medo transformado numa espada
que casa mais secreta e mais vazia
que água mais domada e mais amarga

Minha ferida - consciência
minha loucura encontrada

como arma de gatilho
pronta a me ser disparada

Ó alegria Ó veneno
Ó ódio de me seres tudo
verdade de eu nada ser
na construção do teu mundo

Que fogo inquieto não
iludo
que certeza encontrada
não pergunto

que fuga não domino
e porque luto

que dor não domino
e que desfruto

Ó noite não somente
e também dia
Ó rio não somente
e também corpo

Ó febre não somente meu limite
mas minha invenção
e meu desgosto

Minha evasão - meu país
meu habitar muito lento

Ó meu amor meu invento
meu futuro a destruir
em negação do seu tempo

(Maria Teresa Horta, n 1937, Portugal
in "Minha Senhora de Mim", 1971)

sábado, julho 02, 2005

Fui hoje à Caixa, Marga

Fui hoje à Caixa, Marga, receber
A pensão de reforma.
Coxo e doido, Marga. Muito!
Duro é ser velho, e, então, de ossos a arder?
5 A minha tíbia engole facas.
Fui hoje à Caixa receber
O troco das pernas fracas.
E lembrei-me de ti, que eras habituée
Lá pela ordem dos trinta, dos cinquenta milhões.
10 Da formiga à cigarra:
(Iguais ocasiões)
- Que faisiez vous aux temps chaux,
Dit-elle à cette emprunteuse
.
Lembrei-me de ti com La Fontaine,
Cigarra, claro, chanteuse.
Formiga fora uma aubaine.
Marga, é tão triste o dinheiro!
Até já o ganhas, como eu,
E andaste coxa, cheia de dores
Tu que o atiravas aos punhados
Como em batalha de flores
Estás como os reformados
À espera dos directores
Mas como ainda és bonita
E há sempre um, pronto aos favores,
Vê bem o que ele te debita
Que descontos te faz
Ê provável que insista
Sabendo-te "petite amie" de um pobre pensionista
A menina bem sabe que há certas coisas que nem mesmo um aperto
(Ai, a minha peminha!)
Comucópia - corno coxo.

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)

Corisco de ilha

Corisco de ilha,
Raio celeste,
Levo donzilha
Que alva me deste.
Corusca a espada
Do Arcanjo, e nasce
Da sua folha de lume
Margarida, de que pasce
Cordeirinho ou toiro a gume
De dente como uma faca
Contra cerviz de vaca.
Tudo porém, ilha corisca,
Joga no doce, se a ela se arrisca,
E doce é o mugido,
A baba mais irisada,
O azul d'água do chão,
Poça a pata desenhada,
Recompõe a solidão
Leiteira em pura bucólica
Respeitando margaridinha
Que brota do azul eólica,
Já mulherzinha, avozinha.

Corisco de ilha,
Raio celeste,
Levo novilha
Que a pastor preste,
Pois a donzilha
A outro deste.
E é tudo festa de paus
Batidos nas pedras ermas
Ao som destes versos maus
Das minhas falas enfermas.
E bezerrada e vexame
Quando pastor de ninfas me supunhas.
Não há porém quem mais ame
As deschifradas mulheres
Mas podem faltar-me as unhas.

Ilha corisca,
Samiguelada,
Diamante que risca
A alma desolada,
Por isso te ficou o nome mau
De alma de pau,
Que só a vaqueirinha da má sorte
Resgata no ramo da vida e da morte.
Mas escolhendo-me, ilha corisca,
Sarando-me os sabugos dessangrados
Com seus unguentos Dior apomadados
Por amor aos campos e aos dragões de goela em furna,
Deles rompo como Príncipe Vingador:
Fica uma uma
Para o esquecimento
E um cálice de sangue para o último amor.

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)

Oh pedras de sangue

Oh pedras de sangue,
Oh chagas de sal,
Oh Marga do Mangue,
Palmeira letal,
Macaca de Fogo,
Minha mão no vento,
Meu amor perdido
Nos gestos do tempo.
Marga Victoriosa,
Arnedo de cinza,
Monte Escuro claro
Nas lavas mugidas
De carne sangrenta
Viático a vidas.
O lótus do Nilo
Te assanha as feridas
Que minh'alma unguenta.

A Rosa de Alexandria
Levou a minha alegria.
O relógio de Geneve
Parou à uma na neve:
Levaram-na os loucos tristes,

Descalça vai pela estrada
Marga dorida raptada
Na Suíça federada
Que só pela touca é louca.

O sequestro vai guiado
Pela baba consanguínea,
Ardem palácios à chuva:
Marga, casada mil vezes,
Ficará sempre viúva?

Olhai o Cedro do Líbano,
Manhas que na casca tem!
Na arte é religioso
Mas não dá fé a ninguém.

- Marga, foge! -
Digo-te: - Foge a tempo!
Só assim chegarás à minha choça,
Só assim ele te dá o apartamento
Mentindo-te o mais que possa.

Então, com Genevieve
Pastoreando Paris,
Dos tectos do Quai d'Orsay
Teu sangue tudo me diz.
Revenons, revenons,
La lithanie!
Mordons
La queue du licorne,
Sauvons la face en sursis
Avant que la nuit ne tombe
Et la destinée ne borne
Les chances d'envol de la colombe.


Foge, Marga! Compra vacas
Como quem salva mulheres
Com quadros impressionistas:
Juntos, na vente aux enchères
Para não darmos nas vistas.

A espada de São Miguel
Sangra ao meio da balança:
Pesaste amor contra fel
Nas tuas mãos de criança.

E chora teus francos
Que ele vende suas tintas:
Os teus bezerros estão mancos
Com pena de que me mintas.

Afinal, tudo tão simples
Em meia dúzia de versos
Como orvalho na Fajã!
Lá falámos os farrapos
Dos teus vestidos dispersos
Na cama, até de manhã.

Ouves? São os sapos, Marga,
Já há sol na telha vã
Que uma aboboreira enflora.
Eu sou o que tem a telha,
Marga, para toda vida:
Está tanto frio lá fora!
Entra, dorme, Margarida!

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)

Entregaste-me à partida

Entregaste-me à partida
Fronha da tua almofada,
Quentinha do teu cabelo,
Com sua renda comprida
E muito bem embrulhada
Como se fosse um novelo.

Claro que não foste tu
Quem se lembrou do presente
(Por modéstia, já se vê):
Fui eu, que deitei o cu
Na tua caminha, - oh!
Sem lá ter dormido, não:
Que a gente vive tão castos
Em certas ocasiões,

Que parecemos dois irmãos
Ou uns peregrinos de Santa
Que viessem de muito longe
(Eu o peregrino) e um monge
(Neste caso uma monja)
Lhe cedesse, pra repouso,
A sua própria tarimba
Ainda quente do seu hábito
E marcada do seu corpo
Suado pela cacimba.

Pois foi assim da tua fronha:
Tu ma deste, - que eu queria
Cabeça, almofada e tudo:
Mas tinha muita bagagem,
És prudente e precavida:
Por isso veio a trouxinha
Dada em segredo, à partida.

Na primeira noite, ausente,
Confesso que ma esqueci...
De resto, tu vens co a gente:
Sempre tive a sensação
De dormir ao pé de ti.

Mas hoje de manhã, na insónia,
Resolvi abrir o embrulho,
Estender o quadradinho
De pano no travesseiro,
Com uma certa cerimónia,
Sorrateiro e sem barulho,
Desdobrando, lento, o linho
Para não perder o cheiro,
Que vai das rosas ao vinho.
Ah! que não era preciso!
As violetas do entremeio
Tinham faro do teu seio
E do teu próprio juízo.

Mal o fiz, a cama, o quarto,
Nice, a França e a Itália juntas,
Tudo ficou perfumado
Daquela bomba de amor,
Como se uma margaridinha,
Oferta à Côte d'Azur
E apanhada a mil quilómetros
Ainda com o orvalho preso
Aos espinhos do guipur,
Abafasse as flores caríssimas
E influísse nos termómetros,

Fizesse as mulheres ciumentas,
Desse ao Maio mais calor,
E ao Festival do Livro
(Um pouco moche, confesso)
O best-seller do amor.

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)

O telegrama

Oh! Esta loucura Morse
Com tracinhos dos teus dedos
E pontos das tuas unhas!
A saudade se reforce
Nos eléctricos segredos
Para a matarmos melhor.

Sou tão feliz! Nem supunhas:
Sei o telegrama de cor.
Diz: "A Macaca de Fogo
Não pode passar sem ti.
Vem depressa." - Volto logo.
"Saudades de ripipi."

Mal sabia o operador,
Grafando a onomatopeia,
Que era o teu grito de amor
Chilreando veia a veia!
"Um vendaval de saudades"
("Vendaval", por vento ilhéu
Que bate vidros e grades
E arrasta o amor no escarcéu).

"Com muito amor" - continua
O cabograma contado -
E acaba dizendo "tua
Margarida", como se
O não soubesse o povoado,
O correio, o homem da rua,
O groom e eu mesmo que de
Ti sou, na Terra e na Lua.

Stop. No explicit Morse
Está "Macaca" e "ripipi"
Para que o espanto reforce
Tudo o que me vem de ti.

Agora pergunto: A cara
Do funcionário, ao guichet,
Vendo-te séria, avis rara,
De coroa e franja, até
Firmares, com anéis nos dedos,
Como às tuas Confissões,
Todos aqueles segredos
Contra escudos e tostões...

Oh, bendito seja o Fontes,
(Teu tio Hintze, já se vê...)
Que lançaram estas pontes
De pressa e amor - C. T. T.!

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)

A araucária

Tu és a Araucária Excelsa,
A Criptoméria ]apónica,
Minha Hidrângea Hortênsia,
Celsa Rosa de Abril, água tónica.

Araucária, és gigantesca
Apesar de pequenina,
Com andares de amor, e fresca
Como a relva e a bonina.

Como criptoméria, o críptico
Da natureza que tens
É dares-te íntegra no tríptico
De Graças em que me vens

Pois vales por três ou trinta
Na sã multiplicação
De vinte mulheres de tinta
Que escreve o teu coração.

Como hidrângea és toda água
De sede e lágrimas junta,
Minh'alma contigo é a mágoa
Que me dá tanta pergunta

Que te faço do passado,
Com que te aflijo de dia
Por tanto engano amargado
No copo desta alegria.

Vamos beber água quente
Nas Fumas do nosso amor
Para esquecer tanta gente
Empenhada em tua dor:

Jacinto, Cravo, Narciso,
Adónis de Beladona:
Mas sempre esse alto juízo
De Victória Régia à tona,

Que, pairando misteriosa
Nas podridões do paul,
Lá se alarga a branco e rosa,
Cá me cobre a rubro e azul.

És como a junça e a canteira
Que veste os montes da Ilha,
Minha amada verdadeira
Podendo ser minha filha.

És o vegetal de pedra
E a lava da incandescência,
A bomba de amor que medra
No que parecia indecência

E afinal é fogo verde
No "Bléchnum Brasiliense",
Fumarola que se perde
Antes que em mim se condense.

És a flor do Monte Escuro,
Das azáleas a rainha,
Amor de animal te juro
Pela barba do Padinha.

É isto acaso a aridez
Da rubra flor do deserto
Que, chorando em mim, te crês
Temendo teres-me tão perto?

Não vá crestar-me teu beijo,
Ser teu amor meu desvairo,
Criar cinza em meu desejo,
E algum corisco no Cairo.

És o vegetal de rocha,
A maçã de pedra pome,
A cordeirinha e a cabrocha
Do leite da minha fome.

Alcalina para o mouro,
Em tudo constante e vária,
És a minha hortense de ouro
E, à minha porta, araucária.

A margarida, tomada
Por bolota de suíno,
Brilha firme e recatada
No mar largo ou no intestino

E sobe no verde amargo,
Bandeira ao vento contrária,
Do mar largo, do mar largo,
Como ano a ano a araucária.

Tenho na pedra da porta
O cântaro de chorar
Minha margarida morta,
Minha araucária solar,

Torre verde, cruz de estrada,
Vela e leiva de ananás,
Lomba negra, unha cravada
Em pão ou amor, tanto faz.

Araucária ramo a ramo
(Teimo na araucária de ilha
E faço da mulher que amo
Meu anel e gargantilha).

Plantei-a nos versos toda,
Copou na minha linguagem:
Já que não tivemos boda
Tenhamos esta coragem

De trepadeira à janela,
Uma araucária no chão,
E saibam todos que é ela
A araucária e a paixão,

Ela a noite, ela o sossego,
Ela o vento e o ramalhar
Das árvores que dão ao rego
A semente e o esterroar,

Ela a coroa de marquesa
No rompante de leão,
Com passinhos de princesa
De sinople castelão,

Ela toda esquartelada
De sonho e de fantasia,
Fingindo de loba uivada
Quando é pomba de alegria.

Ela, meu frágil escudo
Nas unhas de vermelhão
Que vão rasgando veludo,
Minha pele rasgando vão

Até me levar à boca
Com gestos de sua mão
A minha alma, que ainda é pouca
Para lhe servir de pão.

E enfim, na dupla refrega
Chilreando ante o meu pasmo,
Como os pássaros se entrega
E ruge de amor no orgasmo.

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)

Alarme nas ilhas

Torres de Ponta Delgada,
Araucárias da Horta, muros de Angra,
Nuvens, verdes profundos,
Campos de Março à lua:
Uma espada no mar, afarolada, sangra,
Ponta Delgada é tua.

Mas quem te deu assim pronome a estas paragens?
Quem separa estas ilhas?
Quem nos tira as viagens,
Os cais, as vacas, as filhas?

Placidez açoriana
Nos teus olhos de china,
Argolas de cigana: Passam-lhes cabos os baleeiros:
Um pouco de amor a mais... e a borda guina!

- Orça! - diz o gajeiro.
E eu sem sal nos meus poemas!
Vais à cozinha? Traz-me caldo.
Pouco é o dinheiro: Vende os diademas.

Empunho açores de fogo, armo sotis às arvelas,
Que adriça picarota ardeu no teu cabelo?
Partiram todas as janelas,
Faço greve de zelo:
Nas palavras poupadas,
Nos amores escondidos,
2S Na graça do que é teu,
Mãos dadas que Deus nos deu.

Fuma, se queres!
Na cinza parda o vento verde esconde as bombas
Da independência.
Há sombra em todas as lombas,
Espírito Santo na violência.
À lâmpada me esperes.

Deves? o quê e a quem?
Um monte nos chega, a terra nos tem,
E a liberdade o que seria
Sem essas mãos de lança
E esse ar de Santa Maria
Que tens, de barro, desde criança?

Olha a chuva nas couves,
Foge da erva molhada.
Um tiro. Não ouves?
Contigo ao pé, não foi nada.

É o povo que finge,
O avião que passou:
Muda como uma esfinge
Ficaste alerta às ilhas do perdão
E a noite me acalentou.
Que geotérmico,
À bomba auricular,
É o teu coração,
Pois nunca rebentou de tanto amar,
Como a caldeira, de cachão.

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)