sábado, julho 02, 2005

Fui hoje à Caixa, Marga

Fui hoje à Caixa, Marga, receber
A pensão de reforma.
Coxo e doido, Marga. Muito!
Duro é ser velho, e, então, de ossos a arder?
5 A minha tíbia engole facas.
Fui hoje à Caixa receber
O troco das pernas fracas.
E lembrei-me de ti, que eras habituée
Lá pela ordem dos trinta, dos cinquenta milhões.
10 Da formiga à cigarra:
(Iguais ocasiões)
- Que faisiez vous aux temps chaux,
Dit-elle à cette emprunteuse
.
Lembrei-me de ti com La Fontaine,
Cigarra, claro, chanteuse.
Formiga fora uma aubaine.
Marga, é tão triste o dinheiro!
Até já o ganhas, como eu,
E andaste coxa, cheia de dores
Tu que o atiravas aos punhados
Como em batalha de flores
Estás como os reformados
À espera dos directores
Mas como ainda és bonita
E há sempre um, pronto aos favores,
Vê bem o que ele te debita
Que descontos te faz
Ê provável que insista
Sabendo-te "petite amie" de um pobre pensionista
A menina bem sabe que há certas coisas que nem mesmo um aperto
(Ai, a minha peminha!)
Comucópia - corno coxo.

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)