quarta-feira, dezembro 28, 2005

Voz do sangue

Matou Conrado a paixão
Que o trazia sucumbido,
Entregando o coração
A Alexandrina Balão,
Que o recebeu por marido.
Depois de um bom par de meses,
De pensar e mais pensar,
E discutir muitas vezes,
Os referidos fregueses
Abalaram do lugar.
Não os viu Deus com bom olho,
Pois se um filho rechonchudo
Deu-lhes, era o tal pimpolho,
Além de tudo, caolho
E mudo, acima de tudo.
Conrado, que o filho adora,
Nina-o, beija-o, mexe, vira,
Debalde suspira e chora:
Palavra não sai p'ra fora,
Palavra alguma lhe tira.
Volta ao lugar do casório
E logo das nuvens cai,
Pois ao ver no consistório
Da igreja, o padre Libório,
Diz a criança: PAPAI!

(Olavo Bilac, 1865-1918, Brasil
in "Antologia do Humorismo e Sátira",
Editora Civilização Brasileira - RJ, 1957)

Velho conto

Nicolau, varão casado
Porém de sorte mofina,
Porque não tem descendência,
Resolve, desesperado,
Ir até a Palestina,
Para fazer penitência.
Parte, enceta a romaria,
Em casa a esposa deixando,
Sozinha, nos tristes lares,
E, piedoso, dia a dia,
Passa três anos rezando
Pelos Sagrados Lugares.
Pede ao Senhor que consagre,
Pelos gemidos que solta,
Esse desejo que o abrasa;
— E efetua-se o milagre,
Pois Nicolau, quando volta,
Acha três filhos em casa...

(Olavo Bilac, 1865-1918, Brasil
in "Antologia do Humorismo e Sátira",
Editora Civilização Brasileira - RJ, 1957)

domingo, dezembro 25, 2005

Quem a paca cara compra, paca cara pagará!

(Peleja com Zé Pretinho dos Tucuns)

Apreciem, meus leitores,
Uma forte discussão,
Que tive com Zé Pretinho,
Um cantador do sertão,
O qual, no tanger do verso,
Vencia qualquer questão.
Um dia, determinei
A sair do Quixadá
— Uma das belas cidades
Do estado do Ceará.
Fui até o Piauí,
Ver os cantores de lá.
Me hospedei na Pimenteira
Depois em Alagoinha;
Cantei no Campo Maior,
No Angico e na Baixinha.
De lá eu tive um convite
Para cantar na Varzinha.
Quando cheguei na Varzinha,
Foi de manhã, bem cedinho;
Então, o dono da casa
Me perguntou sem carinho:
— Cego, você não tem medo
Da fama do Zé Pretinho?
Eu lhe disse: — Não, senhor,
Mas da verdade eu não zombo!
Mande chamar esse preto,
Que eu quero dar-lhe um tombo
— Ele chegando, um de nós
Hoje há de arder o lombo!
O dono da casa disse:
— Zé Preto, pelo comum,
Dá em dez ou vinte cegos
— Quanto mais sendo só um!
Mando já ao Tucumanzeiro
Chamar o Zé do Tucum.
Chamando um dos filhos, disse
Meu filho, você vá já
Dizer ao José Pretinho
Que desculpe eu não ir lá
— E que ele, como sem falta,
Hoje à noite venha cá.
Em casa do tal Pretinho,
Foi chegando o portador
E dizendo: — Lá em casa
Tem um cego cantador
E meu pai mandou dizer-lhe
Que vá tirar-lhe o calor!
Zé Pretinho respondeu:
— Bom amigo é quem avisa!
Menino, dizei ao cego
Que vá tirando a camisa,
Mande benzer logo o lombo,
Porque vou dar-lhe uma pisa!
Tudo zombava de mim
E eu ainda não sabia
Se o tal do Zé Pretinho
Vinha para a cantoria.
As cinco horas da tarde,
Chegou a cavalaria.
O preto vinha na frente,
Todo vestido de branco,
Seu cavalo encapotado,
Com o passo muito franco.
Riscaram duma só vez,
Todos no primeiro arranco
Saudaram o dono da casa
Todos com muita alegria,
E o velhote, satisfeito,
Folgava alegre e sorria.
Vou dar o nome do povo
Que veio pra cantoria:
Vieram o capitão Duda Tonheiro,
Pedro Galvão, Augusto Antônio Feitosa,
Francisco, Manoel Simão,
Senhor José Campineiro,
Tadeu e Pedro Aragão.
O José das Cabaceiras
E o senhor Manoel Casado,
Chico Lopes, Pedro Rosa
E o Manoel Bronzeado,
Antônio Lopes de Aquino
E um tal de Pé-Furado.
Amadeu, Fábio Fernandes,
Samuel e Jeremias,
O senhor Manoel Tomás,
Gonçalo, João Ananias
E veio o vigário velho,
Cura de Três Freguesias.
Foi dona Merandolina,
Do grêmio das professoras,
Levando suas duas filhas,
Bonitas, encantadoras
— Essas duas eram da igreja
As mais exímias cantoras.
Foi também Pedro Martins,
Alfredo e José Segundo,
Senhor Francisco Palmeira,
João Sampaio e Facundo
E um grupo de rapazes
Do batalhão vagabundo.
Levaram o negro pra sala
E depois para a cozinha;
Lhe ofereceram um jantar
De doce, queijo e galinha
— Para mim, veio um café
E uma magra bolachinha.
Depois, trouxeram o negro.
Colocaram no salão,
Assentado num sofá,
Com a viola na mão,
Junto duma escarradeira,
Para não cuspir no chão.
Ele tirou a viola
De um saco novo de chita,
E cuja viola estava
Toda enfeitada de fita.
Ouvi as moças dizendo:
— Oh, que viola bonita!
Então, para eu me sentar,
Botaram um pobre caixão,
Já velho, desmantelado,
Desses que vêm com sabão.
Eu sentei-me, ele vergou
E me deu um beliscão.
Eu tirei a rabequinha
De um pobre saco de meia,
Um pouco desconfiado
Por estar em terra alheia.
Aí umas moças disseram:
— Meu Deus, que rabeca feia!
Uma disse a Zé Pretinho:
— A roupa do cego é suja!
Botem três guardas na porta,
Para que ele não fuja
Cego feio, assim de óculos,
Só parece uma coruja!
E disse o capitão Duda,
Como homem muito sensato:
— Vamos fazer uma bolsa!
Botem dinheiro no prato
— Que é o mesmo que botar
Manteiga em venta de gato!
Disse mais: — Eu quero ver
Pretinho espalhar os pés!
E para os dois contendores
Tirei setenta mil réis,
Mas vou completar oitenta
— Da minha parte, dou dez!
Me disse o capitão Duda:
— Cego você não estranha!
Este dinheiro do prato,
Eu vou lhe dizer quem ganha:
Só pertence ao vencedor
— Nada leva quem apanha!
E nisto as moças disseram:
— Já tem oitenta mil réis,
Porque o bom capitão Duda,
Da Parte dele, deu dez...
Se acostaram a Zé Pretinho,
Botaram mais três anéis.
Então disse Zé Pretinho:
— De perder não tenho medo!
Esse cego apanha logo
— Falo sem pedir segredo!
Como tenho isto por certo,
Vou pondo os anéis no dedo...
Afinemos o instrumento,
Entremos na discussão!
O meu guia disse pra mim:
— O negro parece o Cão!
Tenha cuidado com ele,
Quando entrarem na questão!
Então eu disse:
— Seu Zé, Sei que o senhor tem ciência
— Me parece que é dotado
Da Divina Providência!
Vamos saudar este povo,
Com sua justa excelência!
PRETINHO
— Sai daí, cego amarelo,
Cor de couro de toucinho!
Um cego da tua forma
Chama-se abusa-vizinho
— Aonde eu botar os pés,
Cego não bota o focinho!
CEGO
— Já vi que seu Zé Pretinho
É um homem sem ação
Como se maltrata o outro
Sem haver alteração?!...
Eu pensava que o senhor
Tinha outra educação!
P.
— Esse cego bruto, hoje,
Apanha, que fica roxo!
Cara de pão de cruzado,
Testa de carneiro mocho
— Cego, tu és o bichinho,
Que comendo vira o cocho!
C.
— Seu José, o seu cantar
Merece ricos fulgores;
Merece ganhar na saia
Rosas e trovas de amores
— Mais tarde, as moças lhe dão
Bonitas palmas de flores!
P.
— Cego, eu creio que tu és
Da raça do sapo sunga!
Cego não adora a Deus
— O deus do cego é calunga!
Aonde os homens conversam,
O cego chega e resmunga!
C.
— Zé Preto, não me aborreço
Com teu cantar tão ruim!
Um homem que canta sério
Não trabalha verso assim
— Tirando as faltas que tem,
Botando em cima de mim!
P.
— Cala-te, cego ruim!
Cego aqui não faz figura!
Cego, quando abre a boca,
É uma mentira,pura
— O cego, quanto mais mente,
Ainda mais sustenta e jura!
C.
— Esse negro foi escravo,
Por isso é tão positivo!
Quer ser, na sala de branco,
Exagerado e altivo
— Negro da canela seca
Todo ele foi cativo!
P.
— Eu te dou uma surra
De cipó de urtiga,
Te furo a barriga,
Mais tarde tu urra!
Hoje, o cego esturra,
Pedindo socorro
— Sai dizendo: — Eu morro!
Meu Deus, que fadiga!
Por uma intriga,
Eu de medo corro!
C.
— Se eu der um tapa
No negro de fama,
Ele come lama,
Dizendo que é papa!
Eu rompo-lhe o mapa,
Lhe rompo de espora;
O negro hoje chora,
Com febre e com íngua
— Eu deixo-lhe a língua
Com um palmo de fora!
P.
—No sertão, peguei
Cego malcriado
— Danei-lhe o machado,
Caiu, eu sangrei!
O couro eu tirei
Em regra de escala:
Espichei na sala,
Puxei para um beco
E, depois de seco,
Fiz mais de uma mala!
C.
—Negro, és monturo,
Molambo rasgado,
Cachimbo apagado,
Recanto de muro!
Negro sem futuro,
Perna de tição,
Boca de porão,
Beiço de gamela,
Vento de moela,
Moleque ladrão!
P.
— Vejo a coisa ruim
— O cego está danado!
Cante moderado,
Que não quero assim!
Olhe para mim,
Que sou verdadeiro,
Sou bom companheiro
— Canto sem maldade
E quero a metade,
Cego, do dinheiro!
C.
— Nem que o negro seque
A engolideira,
Peça a noite inteira
Que eu não lhe abeque
— Mas esse moleque
Hoje dá pinote!
Boca de bispote,
Vento de boeiro,
Tu queres dinheiro?
Eu te dou chicote!
P.
— Cante mais moderno,
Perfeito e bonito,
Como tenho escrito
Cá no meu caderno!
Sou seu subalterno,
Embora estranho
— Creio que apanho
E não dou um caldo...
Lhe peço, Aderaldo,
Que reparta o ganho!
C.
— Negro é raiz
Que apodreceu,
Casco de judeu!
Moleque infeliz,
Vai pra teu país,
Se não eu te surro,
Te dou até de murro,
Te tiro o regalo
— Cara de cavalo,
Cabeça de burro!
P.
— Fale de outro jeito,
Com melhor agrado
— Seja delicado,
Cante mais perfeito!
Olhe, eu não aceito
Tanto desespero!
Cantemos maneiro,
Com verso capaz
— Façamos a paz
E parto o dinheiro!
C.
— Negro careteiro,
Eu te rasgo a giba,
Cara de gariba,
Pajé feiticeiro!
Queres o dinheiro,
Barriga de angu,
Barba de guandu,
Camisa de saia,
Te deixo na praia,
Escovando urubu!
P.
— Eu vou mudar de toada,
Pra uma que mete medo
— Nunca encontrei cantador
Que desmanchasse este enredo:
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dia, é um dado, é um dedo!
C.
— Zé Preto, esse teu enredo
Te serve de zombaria!
Tu hoje cegas de raiva
E o Diabo será teu guia
— É um dia,
é um dedo, é um dado,
É um dado, é um dedo, é um dia!
P.
— Cego, respondeste bem,
Como quem fosse estudado!
Eu também, da minha parte,
Canto versos aprumado
— É um dado, é um dia, é um dedo,
É um dedo, é um dia, é um dado!
C.
— Vamos lá, seu Zé Pretinho,
Porque eu já perdi o medo:
Sou bravo como um leão,
Sou forte como um penedo
É um dedo, é um dado, é um dia,
É um dia, é um dado, é um dedo!
P.
— Cego, agora puxa uma
Das tuas belas toadas,
Para ver se essas moças
Dão algumas gargalhadas
— Quase todo o povo ri,
Só as moças 'tão caladas!
C.
— Amigo José Pretinho,
Eu nem sei o que será
De você depois da luta
— Você vencido já está!
Quem a paca cara compra
Paca cara pagará!
P.
— Cego, eu estou apertado,
Que só um pinto no ovo!
Estás cantando aprumado
E satisfazendo o povo
— Mas esse tema da paca,
Por favor, diga de novo!
C.
— Disse uma vez, digo dez
— No cantar não tenho pompa!
Presentemente, não acho
Quem o meu mapa me rompa
— Paca cara pagará,
Quem a paca cara compra!
P.
— Cego, teu peito é de aço
— Foi bom ferreiro que fez
— Pensei que cego não tinha
No verso tal rapidez!
Cego, se não é maçada,
Repete a paca outra vez!
C.
— Arre! Que tanta pergunta
Desse preto capivara!
Não há quem cuspa pra cima,
Que não lhe caia na cara
— Quem a paca cara compra
Pagará a paca cara!
P.
— Agora, cego, me ouça:
Cantarei a paca já
— Tema assim é um borrego
No bico de um carcará!
Quem a caca cara compra,
Caca caca cacará!

Houve um trovão de risadas,
Pelo verso do Pretinho.
Capitão Duda lhe disse:
—Arreda pra lá, negrinho!
Vai descansar o juízo,
Que o cego canta sozinho!
Ficou vaiado o pretinho.
E eu lhe disse:
— Me ouça, José: quem canta comigo
Pega devagar na louça!
Agora, o amigo entregue
O anel de cada moça!
Me desculpe, Zé Pretinho,
Se não cantei a teu gosto!
Negro não tem pé, tem gancho;
Tem cara, mas não tem rosto
— Negro na sala dos brancos
Só serve pra dar desgosto!
Quando eu fiz estes versos,
Com a minha rabequinha,
Busquei o negro na sala,
Mas já estava na cozinha
— De volta, queria entrar
Na porta da camarinha!

(Cego Aderaldo, Aderaldo Ferreira de Araújo, 1878-1950,
in "Eu sou o Cego Aderaldo", prefácio de Rachel de Queiroz, Maltese Editora
São Paulo, 1994)

domingo, dezembro 11, 2005

A sesta

Na rede, que um negro moroso balança,
qual berço de espumas,
formosa crioula repousa e dormita,
enquanto a mucamba nos ares agita
um leque de plumas.

Na rede perpassam as trémulas sombras
dos altos bambus;
e dorme a crioula, de manso embalada,
pendidos os braços da rede nevada
mimosos e nus.

Na rede, suspensa dos ramos erguidos,
suspira e sorri
a lânguida moça, cercada de flores;
aos guinchos dá saltos na esteira de cores
felpudo sagui.

Na rede, por vezes, agita-se a bela,
talvez murmurando
em sonhos as trovas cadentes, saudosas,
que triste colono por noites formosas
descanta chorando.

A rede nos ares do novo flutua,
e a bela a sonhar!
Ao longe nos bosques escuros, cerrados,
de negros cativos os cantos magoados
soluçam no ar.

Na rede olorosa... Silêncio! Deixai-a
dormir em descanso!...
Escravo, balança-lhe a rede serena;
mestiça, teu leque de plumas acena
de manso, de manso...

O vento que passe tranquilo, de leve,
nas folhas do ingá;
as aves que abafem seu canto sentido;
as rodas do «engenho» não façam ruído,
que dorme a sinhá!

(Gonçalves Crespo, 1846-1883, Portugal
in "Miniaturas")

A tua roca

Quando te vejo à noitinha
Nessa cadeira sentada,
Xaile cruzado no peito,
Na cinta a roca enfeitada.

Os olhos postos na estriga,
Volvendo o fuso nos dedos,
Os lábios contando ao fio
Da tua boca segredos.

Eu digo, sem que tu oiças,
Pondo os olhos na tua roca:
Se eu um dia fosse estriga,
Beijaria aquela boca!

Que eu nunca te vi fiando
Sem invejar os desvelos
Com que desfias do linho
Os brancos, finos cabelos!

E aquela fita de seda
Com que enleias o fiado,
Irmã do lencinho verde
Que trazes no penteado?

Parece aquilo um abraço
De um amor que é todo nosso,
A trança do teu cabelo
Em volta do meu pescoço!

É por isso que eu murmuro
Vendo a fita que se enreda:
Quem me dera ser a estriga,
E ela a fitinha de seda!

Eu já sei o que sinto,
Se tristeza, se ventura,
Mal que suspendes a roca
Da tua breve cintura!

Penso que fias nos dedos
Os dias da minha vida,
Ao pé de ti sempre curta,
Ao longe sempre comprida!

Pareces-me um ramalhete
Sentada nessa cadeira,
E a fita da tua roca
A silva de uma roseira.

Meu amor, quando acabares
De espiar a tua estriga
E ouvires por alta noite
Soluçar uma cantiga,

Sou eu que estou a lembrar-me
Da tua divina boca,
E penso que em mim são dados
Os beijos que dás na roca!

(José Simões Dias, 1844-1899, Portugal
in "Peninsulares")

O teu lenço

O lenço que tu me deste
Trago–o sempre no meu seio,
Com medo que desconfiem
Donde este lenço me veio.

As letras que lá bordaste
São feitas do teu cabelo;
Por mais que o veja e reveja,
Nunca me farto de vê-lo.

De noite dorme comigo,
De dia trago – o no seio,
Com medo que os outro saibam
Donde este lenço me veio.

Alvo, da cor da açucena,
Tem um ramo em cada canto;
Os ramos dizem saudade,
Por isso lhe quero tanto.

O lenço que tu me deste
Tem dois corações no meio;
Só tu no mundo é que sabes
Donde este lenço veio.

Todo ele é de cambraia,
O lenço que me ofereceste;
Parece que inda estou vendo
A agulha com que o bordaste.

Para o ver até me fecho
No meu quarto com receio,
Não venha alguém perguntar-me
Donde este lenço me veio.

A cismar neste bordado
Não sei até no que penso;
Os olhos trago – os já gastos
De tanto olhar para o lenço.

Com receio de perdê-lo
Guardo – o sempre no meu seio,
De modo que ninguém saiba
Donde este lenço me veio.

Nas letras entrelaçadas
Vem o meu nome e o teu;
Bendito seja o teu nome
Que se enlaçou com o meu!

Por isso o trago escondido,
Bem guardado no meu seio,
Com medo que me perguntem
Donde este lenço me veio.

Quanto mais me ponho a vê – lo,
Mais este amor se renova;
No dia do meu enterro
Quero levá-lo p'ra cova.

Vem pô-lo sobre o meu peito,
Que eu hei-de tê-lo no seio;
Mas nunca digas ao mundo
Donde este lenço me veio.

(José Simões Dias, 1844-1899, Portugal
in "Peninsulares")

sábado, dezembro 10, 2005

Cantiga

Descalça vai para a fonte,
Leanor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição,
Saia de cor de limão,
Beatilha soqueixada;
Cantando de madrugada,
Pisa as flores na verdura:
Vai fermosa, e não segura.

Leva na mão a rodilha,
Feita da sua toalha;
Com üa sustenta a talha,
Ergue com outra a fraldilha;
Mostra os pés por maravilha,
Que a neve deixam escura:
Vai fermosa, e não segura.

As flores, por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
Ficam de inveja sem cor,
E de vergonha com graça;
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura:
Vai formosa, e não segura.

Não na ver o Sol lhe val,
Por não ter novo inimigo;
Mas ela corre perigo,
Se na fonte se vê tal;
Descuidada deste mal,
Se vai ver na fonte pura:
Vai fermosa, e não segura.

(Francisco Rodrigues Lobo, 1579-1621, Portugal
in "Éclogas")

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Atrás da porta

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei sobre o teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pêlos
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho

Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me entregar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostra que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua...

(Chico Buarque e Francis Hime, Brasil
Cara Nova Editora Musical, 1972)

Bilhete

Quebrei o teu prato
Tranquei o meu quarto
Bebi teu licor
Arrumei a sala
Já fiz tua mala
Pus no corredor
Eu limpei minha vida
Te tirei do meu corpo
Te tirei das estranhas
Fiz um tipo de aborto
E por fim nosso caso
Acabou, está morto

Jogue a cópia da chave
Por debaixo da porta
Para não ter motivo
De pensar numa volta
Fique junto dos teus
Boa sorte, adeus

(Ivan Lins e Vitor Martins, Brasil
ín CD "Essencial" de Fafá de Belém)