segunda-feira, janeiro 31, 2005

Terra

Onde ficava o mundo?
Só pinhais, matos, charnecas e milho
para a fome dos olhos.
Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.
E o mar? E a cidade? E os rios?
Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,
onde chiam carros de bois e há poças de chuva.
Onde ficava o mundo?
Nem a alma sabia julgar.
Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.
Em cada dia o povo abraçava outro povo.
E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:
a estrada branca e menina é uma serpente ondulada
e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.

(Fernando Namora, 1919-1989, Portugal
in "Novo cancioneiro")

Retrato

No teu rosto começa a madrugada.
Luz abrindo,
de rosa em rosa,
transparente e molhada.

Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
cálida, madura.

Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma!

(Eugénio de Andrade, n 1923, Portugal
in "Os Amantes sem dinheiro")

Shelley sem anjos e sem pureza

Shelley sem anjos e sem pureza,
aqui estou à tua espera nesta praça,
onde não há pombos mansos mas tristeza
e uma fonte por onde a água já não passa.

Das árvores não te falo pois estão nuas;
das casas não vale a pena porque estão
gastas pelo relógio e pelas luas
e pelos olhos de quem espera em vão.

De mim podia falar-te,mas não sei
que dizer-te desta história de maneira
que te pareça natural a minha voz.

Só sei que passo aqui a tarde inteira
tecendo estes versos e a noite
que te há-de trazer e nos há-de de deixar sós

(Eugénio de Andrade, n 1923, Portugal
in "As Mãos e os Frutos")

Que música escutas tão atentamente

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

(Eugénio de Andrade, n 1923, Portugal
in "Coração do dia")

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

(Eugénio de Andrade, n 1923, Portugal
in "Os amantes sem dinheiro")

Rotina

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

(Eugénio de Andrade, n 1923, Portugal
in "As mãos e os frutos"

Litania para o Natal de 1967

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos pedir contas do nosso tempo

(David Mourão-Ferreira, 1927-1996, Portugal
in "Lira de bolso")

Natal, e não Dezembro

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

(David Mourão-Ferreira, 1927-1996, Portugal
in "Cancioneiro de Natal")

Senhor, eu vivo coitada

Senhor, eu vivo coitada
vida, des quando vos non vi:
mais, pois vós queredes assi,
por Deus, senhor ben talhada,
querede-vos de mim doer
ou ar leixade-m'ir morrer.

Vós sodes tan poderosa
de min que meu mal e meu ben
en vós é todo; [e] por en,
por Deus, mha senhor fremosa,
querede-vos de mim doer
ou ar leixade-m'ir morrer.

Eu vivo por vós tal vida
que nunca estes olhos meus
dormen, mnha senhor; e, por Deus,
que vos fez de ben comprida,
querede-vos de mim doer
ou ar leixade-m'ir morrer.

Ca, senhor, todo m' é prazer
quant' i vós quiserdes fazer.

(D. Dinis, 1261-1325, Portugal
in "Cancioneiro da Vaticana")

sábado, janeiro 29, 2005

Calçada de Carriche

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

(António Gedeão - Rómulo de Carvalho, 1906-1997
Portugal, in "Poesias completas")

Impressão digital

Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandescente.

Inútil seguir vizinhos,
que ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.

(António Gedeão - Rómulo de Carvalho, 1906-1997
Portugal, in "Poesias completas")

Arma secreta

Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dipara em linha recta
mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.

A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.

Erecta, na noite erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.

(António Gedeão - Rómulo de Carvalho, 1906-1997
Portugal, in "Poesias completas")

Lágrima de preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

(António Gedeão - Rómulo de Carvalho, 1906-1997
Portugal, in "Poesias completas")

Poema épico

O rapagão da camisola vermelha sacode a melena da testa
e retesa os braços num bocejo como um jovem leão voluptuoso.
Dorme a sesta
o involuntário ocioso.

A filha do alfaiate atirou a tesoura e o dedal pela janela
e sumiu-se na noite escura do mundo.
Quis respirar mais fundo
e isso de ser coitada é lá com ela.

O homem da barba por fazer conta os filhos e as moedas
e balbucia qualquer coisa num tom inexpressivo e roufenho.
Súbito chamejam-lhe os olhos como labaredas;
- Eu já venho!

O da face doente,
o que sofre por tudo e por nada, sem querer,
abana a cabeça negativamente:
- Isto não pode ser! Isto não pode ser!

Sentados às soleiras das portas,
mordendo a língua na tarefa inglória,
com letras gordas e por linhas tortas
vão redigindo a História.

(António Gedeão - Rómulo de Carvalho, 1906-1997
Portugal, in "Poesias completas")

Poema do fecho-éclair

Filipe II tinha um colar de oiro,
tinha um colar de oiro com pedras rubis.
Cingia a cintura com cinto de oiro,
com fivela de oiro,
olho de perdiz.

Comia num prato
de prata lavrada
girafa trufada,
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal de rocha
do mais transparente.

Andava nas salas
forradas de Arrás,
com panos por cima,
pela frente e por trás.
Tapetes flamengos,
combates de galos,
alões e podengos,
falcões e cavalos.

Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.

Na mesa do canto
vermelho damasco,
e a tíbia de um santo
guardada num frasco.

Foi dono da Terra,
foi senhor do Mundo,
nada lhe faltava,
Filipe Segundo.

Tinha oiro e prata,
pedras nunca vistas,
safiras, topázios,
rubis, ametistas.
Tinha tudo, tudo,
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.
Um homem tão grande
tem tudo o que quer.

O que ele não tinha
era um fecho-éclair.

(António Gedeão - Rómulo de Carvalho, 1906-1997
Portugal, in "Poesias completas")

Lição sobre a água

Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, ácidos, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.

(António Gedeão - Rómulo de Carvalho, 1906-1997
Portugal, in "Poesias completas")

Poema da auto-estrada

Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta.
Vai na brasa, de lambreta.

Leva calções de pirata,
vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina,
de impaciente nervura.
como guache lustroso,
amarelo de idantreno,
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta:
Vai na brasa, de lambreta.

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa e bem segura.

Com um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta,
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe Leonor
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta
Vai na brasa, de lambreta.

(António Gedeão - Rómulo de Carvalho, 1906-1997
Portugal, in "Poesias completas")

Pedra filosofal

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso,
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos,
que em oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho alacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que foça através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão de átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que o homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

(António Gedeão - Rómulo de Carvalho, 1906-1997
Portugal, in "Poesias completas")

quinta-feira, janeiro 27, 2005

O pastor

Sinos a defuntos! ai, quem morreria!
Olhai, foi o pobre do Ti-Zé-Senhor!...
Velho tão velhinho nenhum outro havia...
P’ra cumprir cem anos lhe faltava um dia,
Há noventa e quatro que era já pastor.

Zagalzinho alegre, desde tenra infância
Já de surrãozito cheio a tiracol,
A escalar montanhas com ardor, com ânsia,
Por pastagens bravas d’auroral fragrância,
Branqueadinho a neve e doiradinho a sol!...

A deserta, imensa, rústica paisagem,
Cordilheiras, campos, astros d’oiro, luar,
Tudo se invertera, por continua imagem,
Em heróica, em livre candidez selvagem
Na extasiada flor do seu ingénuo olhar.

Ordenhado o leite, cantarinho cheio,
Ala para a aldeia, por manhãs sonoras,
Mordiscando a côdea do seu pão centeio,
Arrancando à frauta um pastoril gorjeio,
Rapinando às sebes chupa-méis e amoras.

Fez-se moço e grande pelas serras brutas,
Onde as águias pairam, onde o roble medra,
E onde os fragaredos bárbaros, com grutas,
Se encastelam crespos, infernais, em lutas,
Tal como tormentas de trovões de pedra!

Cada serrania alcantilada e brava,
Sob o azul d’Agosto, cor de fogo e pó,
Recozida a febre e atordoada em lava,
Lagrimeja apenas duma rocha cava
Pranto, que o bebera uma ovelhinha só!

E por essas fulvas, íngremes ladeiras
Pastoreava o gado, quase morto já
Só rochedos tristes, nus como caveiras,
E zambulhos, zimbros, tojos, cornalheiras,
Acres para pragas duma boca má!

E depois as torvas, negras invernadas,
Noites formidandas, lobos a ulular,
Desmoronamentos, temporais, nevadas,
Carcavões abertos pelas enxurradas,
Troncos de sobreiros de raiz ao ar!...

Oh, as noites tristes, alapado e quedo,
Num covil de feras, ou algar deserto!...
E dormia ao lume sem temor, sem medo,
Pois Nossa – Senhora, Virgem do Degredo,
Na ermidinha branca lhe ficava perto...

Mas no mês de Março píncaros maninhos,
Montes cenobitas, d’ossos e burel,
Vestem-se de trevos e de rosmaninhos,
Com sorrisos d’oiro que alvoroçam ninhos,
E destilam favos de inocência e mel!...

Era então alegre como o Sol nascente,
Mais feliz nos campos do que Deus no altar!
Anhos e cabritos, leite rescendente,
Pastos tão mimosos, que quisera a gente
Transformar-se em ave para os não calcar!

Tanto Abril florido, tanta calma adusta,
Tantas inverneiras, sem pesar ou dor,
Tinham-lhe gravado na expressão robusta
Como que uma sombra de grandeza augusta,
Junta a uma inocência matinal de flor.

Que importavam gelos, ventanias, feras?
Peito nu, aberto; construção de touro!
Quase me admirava que nas primaveras
Desse peito rude não brotassem heras,
Margaridas, lírios com abelhas douro!

Ao relento a cama no orvalhado pasto,
Cerca dos carneiros e dos bons lebréus;
Que divino leito, primitivo e casto,
Todo embalsamado de serpol, mentrasto,
Sob a paz imensa do perdão de Deus!...

E esse gigantesco latagão corado
Era, como os santos ermitões, frugal:
Duas azeitonas, queijo do seu gado,
E de rala escura meio pão migado
Num caldeiro d’água com azeite e sal.

Não jantava morte, assassinato, dores,
Hecatombes tristes que jantamos nós;
E por isso ria como riem flores,
Atraindo em bandos aves de mil cores,
Feiticeiro simples, com o olhar e a voz!...

Sua rude frauta de pastor ouvindo
Na misteriosa luz crepuscular,
Iam-se as estrelas uma a uma abrindo,
E desabrochava pelo azul infindo
Soluçante a Lua como um nenufar!...

Que trinados vivos, d’argentino encanto
Ai, missa do galo, lhe inspiravas tu,
Nessa frauta, quando de cajado e manto
Ia deitar loas ao menino santo
No altar-mor da igreja sorridente e nu!

Fora lá criança, mágica ventura
Centenário quase a derradeira vez...
E gorjeava a frauta com igual candura,
Pois a alma virgem, luminosa e pura,
Conservara-a sempre como Deus a fez.

Nela penetrava, nela se embebia
Tudo que é inocência, riso, amor, clarão
Frémito de pomba, voz de cotovia,
Cânticos dos montes ao nascer do dia,
Lágrimas dos astros pela escuridão!...

Longe dos Pecados de raivosas presas,
Belzebus famintos d’olhos de metal,
Longe das terríveis tentações acesas
No torpor dos leitos, na embriaguez das mesas,
Pululantes larvas, vibriões do Mal,

O pastor ditoso envelheceu ridente
Por despenhadeiros, alcantis, calvários,
E na fronte augusta de ermitão, de crente,
Lhe geavam anos luminosamente,
Como as pombas brancas sobre os campanários!

Das ovelhas meigas – Íntimas heranças! –
Recolhera toda a abnegação cristã
Oh, sejais benditas, ovelhinhas mansas,
Que com vosso leite sustentais crianças,
E vestis os pobres com a vossa lã!

Aos noventa anos, festival, risonho,
Álamo gigante d’água viva ao pé;
Sim! inda na boca risos de medronho.
E nos olhos lentos, a tremer em sonho,
Dois miosótis virgens de candura e fé!

Com seu manto branco de burel grosseiro,
Cãs de puro arminho, báculo na mão,
Alembrava um santo feito pegureiro,
Que eu desejaria sobre o altar cruzeiro
Duma ogiva d’astros, em adoração!

Centenário quase, recordava aspectos
De lendário tronco num feliz vergel,
Moribundo em meio de seus verdes netos,
Com a Providência a agasalhá-lo em fetos,
Com abelhas d’oiro inda a nutri-lo a mel,

E que surdo à voz dos ledos passarinhos,
E que cego ao éter de esplendor ideal,
Com o ai extremo lança dois raminhos,
A chamar ainda por canções de ninhos
E a dizer aos astros um adeus final!

Tal o pastor santo, já de vez caldo,
Já corcovadinho, flébil, quase morto,
Arrimado ao velho báculo torcido,
Nada ouvindo, nada, com o duro ouvido,
Vagamente olhando com o olhar absorto,

Ia pelos montes na tristeza infinda
Dum coração ermo, com a morte aceite,
A pedir aos anjos para ouvir ainda
Badalar ovelhas numa noite linda,
Quando a Lua os campos alagasse em leite!

Seu bisavô fora guardador de gado,
Guardador de gado seu avô, seu pai;
Criou filho e netos como foi criado,
E morreu ditoso porque o seu cajado
Seu rebanho ainda pastoreando vai!

Cândido, na paz das solidões dormentes,
Ignorando o mundo rancoroso e vil
Aos cem anos inda, com a fé dos crentes,
Punha olhos claros, simples, inocentes,
Na estrelinha d’Alva das manhãs d’Abril!

Levará no esquife para os céus a palma
Da grandeza mansa, da virtude austera.
Realizou no mundo a perfeição da Alma
Porque foi bondoso como a Lua é calma,
Porque foi um santo sem saber que o era!...

Vós, ó semideuses do entremez da Glória,
Césares, tiranos, capitães, heróis,
Épicas figuras de imortal memória,
Que de serro em serro iluminais a história
Como crepitantes, trágicos faróis,

Na região do Imenso, no Infinito puro,
Onde me deslumbra, como um Sol, Jesus,
Não sois mais que larvas a tremer no escuro,
Que ninguém conhece, que eu em vão procuro
Com meus olhos calmos nesse mar de luz!

E o pastor d’ovelhas, que comeu centeio,
Que viveu nos montes, que dormiu nas grutas,
Tão asselvajado, cabeludo e feio,
Que disséreis quase que esse monstro veio
Da matriz da terra, como as pedras brutas,

Já liberto agora da Ilusão do mundo
Fez-se em anjo branco, inda outra vez pastor
Milhões d’astros seguem seu olhar jucundo,
São rebanhos d’almas pelo azul profundo
As ovelhas novas do Ti-Zé-Senhor!...

(Guerra Junqueiro, 1850-1923, Portugal
in "Os Simples")

Portugal

Maior do que nós, simples mortais, este gigante
foi da glória dum povo o semideus radiante.
Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado,
seu torrão dilatou, inóspito montado,
numa pátria... E que pátria! A mais formosa e linda
que ondas do mar e luz do luar viram ainda!
Campos claros de milho moço e trigo loiro;
hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro;
trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas;
nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas;
gados nédios; colinas brancas olorosas;
cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas;
selvas fundas, nevados píncaros, outeiros
de olivais; por nogais, frautas de pegureiros;
rios, noras gemendo, azenhas nas levadas;
eiras de sonho, grutas de génios e de fadas:
riso, abundância, amor, concórdia, Juventude:
e entre a harmonia virgiliana um povo rude,
um povo montanhês e heróico à beira-mar,
sob a graça de Deus a cantar e a lavrar!
Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias
conchegadinhas sempre ao torreão de ameias.
Cada vila um castelo. As cidades defesas
por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas;
e, a dar fé, a dar vigor, a dar o alento,
grimpas de catedrais, zimbórios de convento,
campanários de igreja humilde, erguendo à luz,
num abraço infinito, os dois braços da cruz!
E ele, o herói imortal duma empresa tamanha,
em seu tuguriozinho alegre na montanha
simples vivia – paz grandiosa, augusta e mansa! -,
sob o burel o arnês, junto do arado a lança.
Ao pálido esplendor do ocaso na arribana,
di-lo-íeis, sentado à porta da choupana,
ermitão misterioso, extático vidente,
olhos no mar, a olhar sonambolicamente...
«Águas sem fim! Ondas sem fim! Que mundos novos
de estranhas plantas e animais, de estranhos povos,
ilhas verdes além... para além dessa bruma,
diademadas de aurora, embaladas de espuma!
Oh, quem fora, através de ventos e procelas,
numa barca ligeira, ao vento abrindo as velas,
a demandar as ilhas de oiro fulgurantes,
onde sonham anões, onde vivem gigantes,
onde há topázios e esmeraldas a granel,
noites de Olimpo e beijos de âmbar e de mel!»
E cismava, e cismava... As nuvens eram frotas,
navegando em silêncio a paragens ignotas...
– «Ir com elas...Fugir...Fugir!...» Ûa manhã,
louco, machado em punho, a golpes de titã,
abateu, impiedoso, o roble familiar,
há mil anos guardando o colmo do seu lar.
Fez do tronco num dia uma barca veleira,
um anjo à proa, a cruz de Cristo na bandeira...
Manhã de heróis... levantou ferro... e, visionário,
sobre as águas de Deus foi cumprir seu fadário.
Multidões acudindo ululavam de espanto.
Velhos de barbas centenárias, rosto em pranto,
braços hirtos de dor, chamavam-no... Jamais!
Não voltaria mais! Oh! Jamais! Nunca mais!
E a barquinha, galgando a vastidão imensa,
ia como encantada e levada suspensa
para a quimera astral, a músicas de Orfeus:
o seu rumo era a luz; seu piloto era Deus!
Anos depois, volvia à mesma praia enfim
uma galera de oiro e ébano e marfim,
atulhando, a estoirar, o profundo porão
diamantes de Golconda e rubins de Ceilão!

(Guerra Junqueiro, 1850-1923, Portugal
in "Pátria")

Adoração

Eu não te tenho amor simplesmente. A paixão
Em mim não é amor; filha, é adoração!
Nem se fala em voz baixa à imagem que se adora.
Quando da minha noite eu te contemplo, aurora,
E, estrela da manhã, um beijo teu perpassa
Em meus lábios, oh! quando essa infinita graça
do teu piedoso olhar me inunda, nesse instante
Eu sinto – virgem linda, inefável, radiante,
Envolta num clarão balsâmico da lua,
A minh'alma ajoelha, trémula, aos pés da tua!
Adoro-te!... Não és só graciosa, és bondosa:
Além de bela és santa; além de estrela és rosa.
Bendito seja o deus, bendita a Providência
Que deu o lírio ao monte e à tua alma a inocência,
O deus que te criou, anjo, para eu te amar,
E fez do mesmo azul o céu e o teu olhar!...

Guerra Junqueiro, 1850-1923, Portugal
in "Poesias dispersas")

Regresso ao lar

Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh, a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago de amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!...

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...

Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas manso, muito manso...
tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar!

(Guerra Junqueiro, 1850-1923, Portugal
in "Os Simples")

A moleirinha

Pela estrada plana, toque, toque, toque,
Guia o jumentinho uma velhinha errante.
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toque, toque, toque,
A velhinha atrás, o jumentito adiante!...

Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol.

Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
O jerico ruço duma linda cor;
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toque, toque, a moleirinha branca
Com o galho verde duma giesta em flor.

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toque, toque, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

Toque, toque, toque, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem mo dera a mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a virgem pura foi para o Egipto,
Com certeza ia num burrico assim.

Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toque, toque, toque, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toque, se levanta,
P’ra vestir os netos, p’ra acender o lume...

Toque, toque, toque, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, p’ra a fazer cristã!

Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!...

Toque, toque, como o burriquito avança!
Que prazer d’outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...

Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...

Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d’astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d’oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!

(Guerra Junqueiro, 1850-1923, Portugal
in "Os Simples")

segunda-feira, janeiro 24, 2005

Ponto de vista

Eu não tenho vergonha
de dizer palavrões,
de sentir secreções
(vaginais ou anais).
As mentiras usuais
que nos fodem sutilmente
essas sim são imorais,
essas sim são indecentes

Ah! a poesia, que tudo põe a nu.

(Leila Míccolis, n 1947, Brasil
in "O bom filho a casa torra", Editora Blocos, 1992 - RJ)

Non posso eu, meu amigo

- Non posso eu, meu amigo,
con vossa soidade
viver, ben vo-lo digo;
e por esto morade,
amigo, u mi possades
falar e me vejades.

Non posso u vos non vejo
viver, ben o creede,
tan muito vos desejo;
e por esto vivede,
amigo, u mi possades
falar e me vejades.

Nasci em forte ponto;
e, amigo, partide
o meu gran mal sen conto,
e por esto guaride,
amigo, u mi possades
falar e me vejades.

- Guarrei, ben o creades,
senhor, u me mandades.

(D. Dinis, 1261-1325, Portugal
in "Cancioneiro da Vaticana")

Ai, flores, ai, flores do verde pino

- Ai, flores, ai, flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
Ai, Deus, e u é?

Ai, flores, ai, flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
Ai, Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi à jurado?
Ai, Deus, e u é?

- Vós me preguntades polo vosso amigo?
E eu ben vos digo que é sano e vivo.
Ai, Deus, e u é?

Vós me preguntades polo vosso amado?
E eu ben vos digo que é vivo e sano.
Ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é sano e vivo
e seerá vosco ante o prazo saido.
Ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é vivo e sano
e seerá vosco ante o prazo passado.
Ai, Deus, e u é?

(D. Dinis, 1261-1325, Portugal
in "Cancioneiro da Vaticana")

Balada da neve

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
- Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
- e cai no meu coração.

(Augusto Gil, 1873-1929, Portugal
in "Luar de Janeiro")

Pobre tísica

Quando ela passa à minha porta,
Magra, lívida, quase morta,
E vai até à beira-mar,
Lábios brancos, olhos pisados:
Meu coração dobra a finados,
Meu coração põe-se a chorar.

Perpassa leve como a folha,
E, suspirando, às vezes olha
Para as gaivotas, para o Ar:
E, assim, as suas pupilas negras
Parecem duas toutinegras,
Tentando as asas para voar!

Veste um hábito cor de leite,
Saiinha lisa, sem enfeite,
Boina maruja, toda luar:
Por isso, mal na praia alveja,
As mais suspiram com inveja:
«Noiva feliz, que vais casar...»

Triste, acompanha-a um "Terra Nova"
Que, dentro em pouco, à fria cova
A irá de vez acompanhar...
O chão desnuda com cautela,
Que "Boy" conhece o estado dela:
Quando ela tosse, põe-se a uivar!

E, assim, sozinha com a aia,
Ao Sol, se assenta sobre a praia,
Entre os bebés, que é o seu lugar.
E o Oceano, trémulo avozinho,
Cofiando as barbas cor de linho,
Vai ter com ela a conversar.

Falam de sonhos, de anjos, e ele
Fala d'amor, fala daquele
Que tanto e tanto a faz penar...
E o coração parte-se todo,
Quando a sorrir, com tão bom modo,
O Mar lhe diz: «Há-de sarar...»

Sarar? Misérrima esperança!
Padres! ungi essa criança,
Podeis sua alma encomendar:
Corpinho d'anjo, casto e inerme,
Vai ser amada pelo verme,
Os bichos vão-na desfrutar.

Sarar? Da cor dos alvos linhos,
Parecem fusos seus dedinhos,
Seu corpo é roca de fiar...
E, ao ouvir-lhe a tosse seca e fina,
Eu julgo ouvir numa oficina
Tábuas do seu caixão pregar!

Sarar? Magrita como o junco,
O seu nariz (que é grego e adunco)
Começa aos poucos de afilar,
Seus olhos lançam ígneas chamas:
Ó pobre mãe, que tanto a amas,
Cautela! O Outono está a chegar...

(António Nobre, 1867-1900, Portugal
in "Só")

domingo, janeiro 23, 2005

Fraldiqueiros

Coitarados!
Meninos, tiveram pouca mamã.
Carências afectivas afunilaram-nos psiquicamente
desde a impoética infância até este corrimento sentimental
em que, grandinhos, se compensam, comprazem.
Continuam a gotejar.

Coitarados!
Gulosos de pontas de dedos,
perdem-se em beijoqueirices, diminutivas ternurinhas.
Têm sempre rebuçadinhos d'alma para as mulheres.
Falam freud ao colo das amigas.

Fraldiqueiros. . .
Vailevar-lhes isso a nojo, machão?
MuIheres gostam. Riem, prazidas.
«Venha cá à mamã!»

O golpe do coitadinho (não confundir com o golpe
do irmãozinho, esse na base do esquema da alma gémea)
é o que estás a ver: saltar para o regaço e pedir nhém nhém
em nome do Sigismundo, daquele que dizia, salvo erro:
A alma? Geme-a...

Fraldiqueiros
a mandarem beijinhos por teleférico! de saliva
Engatinhantes, tiram do estojo complexos em forma de saxofone
e tocantam-lhes a pingona freudista canção do bandido,
Fraldiqueiros. . .
Mulheres gostam. Até onde?

(Alexandre O'Neill, 1924-1986, Portugal
in "Poesias Completas"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda)

Fraco mas forte

Nada na mão
algo na v'rilha
remancho as noites
e troto os dias
entre tabaco
viris bebidas
fraco mas forte
de muitas vidas
(que eu já dormi
co'as duas mães
e as duas filhas
que vão à missa
com três mantilhas)

Nada na mão
algo na v'rilha
sofro comigo
luta intestina
(ao bem ao mal
a mesma alpista)
bebo contigo
cerveja uísqui
p'ra que se veja
mais rubra a crista

Nada na mão
algo na v'rilha
encontro a morte
no meio da vida
morte bonita
nada aflita
(ou é da minha
tão fraca vista?)
e tenho sorte

Nada na mão
algo na v'rilha
invisto contra
o zero puro
da minha vida

e duro, duro!

(Alexandre O'Neill, 1924-1986, Portugal
in "Poesias Completas"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda)

A traição

quando do cavalo de tróia saiu outro
cavalo de tróia e deste um outro
e destoutro um quarto cavalinho de
tróia tu pensaste que da barriguinha
do último já nada podia sair
e que tudo aquilo era como uma parábola
que algum brejeiro estivesse a contar-te
pois foi quando pegaste nessa espécie
de gato de tróia que do cavalo maior
saiu armada até aos dentes de formidável amor
a guerreira a que já trazia dentro em si
os quatro cavalões do vosso apocalipse

(Alexandre O'Neill, 1924-1986, Portugal
in "Poesias Completas"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda)

Cão

Cão passageiro, cão estrito
Cão rasteiro cor de luva amarela,
Apara lápis, fraldiqueiro,
Cão liquefeito, cão estafado
Cão de gravata pendente,
Cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
Cão ululante, cão coruscante,
Cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão ali, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal de poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moido de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção,
cão pré fabricado,
cão espelho, cão cinzeiro, cão botija,
cão de olhos que afligem,
cão problema...
Sai depressa, ó cão, deste poema!

(Alexandre O'Neill, 1924-1986, Portugal
in "Abandono Vigiado")

Amigo

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra amigo!

Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!

(Alexandre O'Neill, 1924-1986, Portugal
in "No Reino da Dinamarca")

sábado, janeiro 22, 2005

Este inferno de amar

Este inferno de amar - como eu amo!
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que d'antes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tam serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...

(Almeida Garrett, 1799-1854, Portugal
in "Folhas Caídas")

Os cinco sentidos

São belas - bem o sei, essas estrelas
Mil cores - divinais têm essas flores;
Mas eu não tenho amor, olho para elas;
Em toda a natureza
Não vejo outra beleza
Senão a ti - a ti!

Divina - ai! sim, será a voz que afina
Saudosa - na ramagem densa, umbrosa.
Será; mas eu do rouxinol que trina
Não oiço a melodia,
Nem sinto outra harmonia
Senão a ti - a ti!

Respira - n'aura que entre as flores gira,
Celeste - incenso de perfume agreste.
Sei... não sinto: minha alma não aspira,
Não percebe, não toma
Senão o doce aroma
Que vem de ti - de ti!

Formosos - são os pomos saborosos,
É um mimo - de néctar o racimo:
E eu tenho fome e sede... sequiosos,
Famintos meus desejos
Estão... mas é de beijos,
E só de ti - de ti!

Macia - deve a relva luzidia
Do leito - se por certo em que me deito;
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
Sentir outras carícias,
Tocar noutras delícias
Senão em ti - em ti!

A ti! ai, a ti só os meus sentidos
Todos num confundidos,
Sentem, ouvem, respiram;
Em ti, por ti deliram.
Em ti a minha sorte,
A minha vida em ti;
E quando venha a morte,
Será morrer por ti.

(Almeida Garrett, 1799-1854, Portugal
in "Folhas Caídas")

Barca bela

Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela.
Que é tão bela,
Oh pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Oh pescador.

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela
Foge dela
Oh pescador!

(Almeida Garrett, 1799-1854, Portugal
in "Folhas Caídas")

Nau Catrineta

Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.

Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.

Deitaram sortes à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.

- "Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal!"

- "Não vejo terras de Espanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar."

- "Acima, acima, gageiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal!"

- "Alvíssaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal!"
Mais enxergo três meninas,
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar."

- "Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar."

- "A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar."

- "Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar."

- "Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar."

- "Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual."

- "Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar."

- "Dar-te-ei a Catrineta,
Para nela navegar."

- "Não quero a Nau Catrineta,
Que a não sei governar."

- "Que queres tu, meu gageiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?"

- "Capitão, quero a tua alma,
Para comigo a levar!"

- "Renego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar!
A minha alma é só de Deus;
O corpo dou eu ao mar."

Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;

E à noite a Nau Catrineta
Estava em terra a varar.

(Almeida Garrett, 1799-1854, Portugal
in "Romanceiro")

sexta-feira, janeiro 21, 2005

Acordar tarde

tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

(Al Berto, 1948-1997, Portugal
in "Horto de Incêndio", Ed. Assírio & Alvim, 2000)

Recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço

(Al Berto, 1948-1997, Portugal
in "Horto de Incêndio", Ed. Assírio & Alvim, 2000)

quinta-feira, janeiro 20, 2005

Faz-me o favor...

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor - muito melhor! -
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

(Mário Cesariny, n 1923, Portugal
in "O Virgem Negra")

domingo, janeiro 16, 2005

Os sebastiacas trombos não deixaram partir

Os sebastiacas trombos não deixaram partir
Portugal para o Brasil.
Vagos ficamos da amurada aos tombos
Para a largada rombos
Do corpo de Portugal.

Mas a Hora deixada ao sono vil
Dos que provendo tudo podem nada
Mais que o fogo senil
Do Império Final,
Cintila na amurada:
Nao há Portugal e Brasil.
Brasil é Portugal.

(Mário Cesariny, n 1923, Portugal
in "O Virgem Negra")

sábado, janeiro 15, 2005

X

Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o Sol mais criador,
Mais refulgente a Lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida:
- Quanto mais funda e lúgubre a descida,
Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa...em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

IX

Perdi os meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma...
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma...
- Tantos escolhos! Quem podia vê-los?
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!

Perdi minha taça, o meu anel,
a minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de oiro e pedrarias...

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...
Sobre o meu coração pesam montanhas...
Olho assombrada as minhas mãos vazias...

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

VIII

Abrir os olhos, procurar a luz,
De coração erguido no alto, em chama,
Que tudo neste mundo se reduz
A ver os astros cintilar na lama!

Amar o sol da glória e a voz da fama
Que em clamorosos gritos se traduz!
Com misericórdia, amar quem nos não ama,
E deixar que nos preguem numa cruz!

Sobre um sonho desfeito erguer a torre
Doutro sonho mais alto e, se esse morre,
Mais outro e outro ainda, toda a vida!

Que importa que nos vençam desenganos,
Se pudermos contar os nossos anos
Assim como degraus duma subida?

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

VII

São mortos os que nunca acreditaram
Que esta vida é somente uma passagem,
Um atalho sombrio, uma paisagem
Onde os nossos sentidos se pousaram.

São mortos os que nunca alevantaram
De entre escombros a Torre de Menagem
Dos seus sonhos de orgulho e de coragem,
E os que não riram e os que não choraram.

Que Deus faça de mim, quando eu morrer,
Quando eu partir para o País da Luz,
A sombra calma de um entardecer,

Tombando, em doces pregas de mortalha,
Sobre o teu corpo heróico, posto em cruz,
Na solidão dum campo de batalha!

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

VI

Falo de ti às pedras das estradas,
E ao sol que é loiro como o teu olhar,
Falo ao rio, que desdobra a faiscar,
Vestidos de Princesas e de Fadas;

Falo às gaivotas de asas desdobradas,
Lembrando lenços brancos a acenar,
E aos mastros que apunhalam o luar
Na solidão das noites consteladas;

Digo aos anseios, os sonhos, os desejos
De onde a tua alma, tonta de vitória,
Levanta ao céu a torre dos meus beijos!

E os meus gritos de amor, cruzando o espaço,
Sobre os brocados fúlgidos da glória,
São astros que me tombam do regaço!

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

V

Dize-me, Amor, como te sou querida,
Conta-me a glória do teu sonho eleito,
Aninha-me a sorrir junto ao teu peito,
Arranca-me dos pântanos da vida.

Embriagada numa estranha lida,
Trago nas mãos o coração desfeito.
Mostra-me a luz, ensina-me o preceito
Que me salva e levante redimida!

Nesta negra cisterna em que me afundo,
Sem quimeras, sem crenças, sem ternura,
Agonia sem fé dum moribundo,

Grito o teu nome numa sede estranha,
Como se fosse, Amor, toda a frescura
Das cristalinas águas da montanha!

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

IV

És tu! És tu! Sempre vieste, enfim!
Oiço de novo o riso dos teus passos!
És tu que eu vejo a estender-me os braços
Que Deus criou pra me abraçar a mim!

Tudo é divino e santo visto assim...
Foram-se os desalentos, os cansaços...
O mundo não é mundo: é um jardim!
Um céu aberto: longes, os espaços!

Prende-me toda, Amor, prende-me bem!
Que vês tu em redor? Não há ninguém!
A Terra? - Um astro morto que flutua...

Tudo o que é chama a arder, tudo o que sente,
Tudo o que é vida e vibra eternamente
É tu seres meu, Amor, e eu ser tua!

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

III

Frémito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,

Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!

E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que me não amas...

E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas...

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

II

Meu amor, meu Amado, vê...repara;
Pousa os teus lindos olhos de oiro em mim,
- Dos meus beijos de amor Deus fez-me avara
Para nunca os contares até o fim.

Meus olhos têm tons de pedra rara
- É só para teu bem que os tenho assim --
E as minhas mãos são fontes de água clara
A cantar sobre a sede dum jardim.

Sou triste como folha ao abandono
Num parque solitário, pelo Outono,
Sobre um lago onde vogam nenufares...

Deus fez-me atravessar o teu caminho...
- Que contas dás a Deus indo sózinho,
Passando junto a mim, sem me encontrares? --

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

I

Gosto de ti apaixonadamente,
De ti que és a vitória, a salvação,
De ti que me trouxeste pela mão
Até o brilho desta chama quente.

A tua linda voz de água corrente
Ensinou-me a cantar...e essa canção
Foi ritmo nos meus versos de paixão,
Foi graça no meu peito de descrente.

Bordão a amparar minha cegueira,
Da noite negra o mágico farol,
Cravos rubros a arder numa fogueira!

E eu, que era neste mundo uma vencida,
Ergo a cabeça ao alto, encaro o Sol!
- Águia real, apontas-me a subida!

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

Solidão de Amador no Jardim de Santo António do Príncipe

Tempo após tempo no centro da Praça
o Rei medita.
Conserva a fronte altiva, o queixo austero
mas o rubro esplendor do sacrílego manto
é apenas uma saudade oblíqua
que o atormenta.
Longe, nos areais do Sul
ficou sepultada sua corte de guerreiros
seus capitães
embebidos nas ondas confundidos com o mar.
A sombra dos coqueiros engoliu o seu reino
escamas e cabeças apodrecem
onde intrépida refulgia a azagaia.
Por isso não dorme o Rei e só, medita
À chuva e ao vento, noite e dia.
Seu perfil perpétuo povoa a praça
Porém nos Angolares vaga um coração
em demanda de um povo e seu destino.

(Conceição Lima, n 1961, S. Tomé e Príncipe
in "O Útero da Casa", Editorial Caminho, 2004, Lisboa)

1975

E quando te perguntarem
responderás que aqui nada aconteceu
senão na euforia do poema.

Diz que éramos jovens éramos sábios
E que em nós as palavras ressoavam
como barcos desmedidos

Diz que éramos inocentes, invencíveis
e adormecíamos sem remorsos sem presságios

Diz que engendramos coisas simples perigosas:
caroceiros em flor
uma mesa de pedra a cor azul
um cavalo alado de crinas furiosas

Oh, sim! Éramos jovens, terríveis
mas aqui - nunca o esqueças - tudo aconteceu
nos mastros do poema.

(Conceição Lima, n 1961, S. Tomé e Príncipe
in "O Útero da Casa", Editorial Caminho, 2004, Lisboa)

sexta-feira, janeiro 14, 2005

Vila Maria número 6

Gosto de me sentar na Vila Maria
nas tardes de domingo
E gosto, nas tardes de domingo
na Vila Maria
do rumor da brisa na casa número seis.

Gosto do quintal amplo, de barro escuro
onde o verde do xapo-xapo é mais puro
e a polpa mais macia, mais algodão
Bananeiras alinhadas como soldados
carambolas, pitangas, maracujás
e os ramos das goiabeiras estendidos
como mãos

Gosto da bananeira-flor, à entrada
erecta como um guardião
da simetria do seu leque
aberto em oferta
e da sombra que cai a pique
sobre a relva

Há um cheiro vegetal, de pomar
mesmo se a maresia atravessa o ar
na Vila Maria número seis

Gosto da azáfama de domingo nas traseiras
quando na gamela a lussúa é promessa
e p'los degraus de pedra perpassam gestos e pressa

O crepitar da brasa no fogão
as últimas ordens o frémito da festa
e o vulto de Aíto reclinado no cadeirão

Gosto da inesperada saudação
de nhô N'Tóni
De longe, desde o portão
seu gesto antigo de chegar
seu cantante falar
de Santo Antão
pejado de sussurros e secretas novas
e o aguardado modo de puxar a cadeira
para com Nanda partilhar a refeição

Gosto das tardes de domingo
na casa número seis da Vila Maria
onde as horas se repartem como gomos
iguais
e os encontros têm a conivente magia
dos rituais.

(Conceição Lima, n 1961, S. Tomé e Príncipe
in "O Útero da Casa", Editorial Caminho, 2004, Lisboa)

Os rios da tribo

Que rios reverberam em nosso leito?
Quantas tribos injectadas em teu peito?
Nhá Maria de onde é?
Nhô Ambrósio nasceu em Água Izé?
E Katona, Aiúpa, Makolé?
Silva, Danquá, Cassandra, Camblé...
Padiçê, Mé Pó, Filingwé...
Quantos nomes fundam transmutam minha fronte?

(Conceição Lima, n 1961, S. Tomé e Príncipe
in "O Útero da Casa", Editorial Caminho, 2004, Lisboa)

Roça

Perguntam os mortos:

Porque brotam raízes dos nossos pés?

Porque teimam em sangrar
Em nossas unhas
As pétalas dos cacaueiros?

Que reino foi esse que plantámos?

(Conceição Lima, n 1961, S. Tomé e Príncipe
in "O Útero da Casa", Editorial Caminho, 2004, Lisboa)

A casa

Aqui projectei a minha casa:
alta, perpétua, de pedra e claridade.
O basalto negro, poroso
viria da Mesquita.
Do Riboque o barro vermelho
da cor dos ibiscos
para o telhado.
Enorme era a janela e de vidro
que a sala exigia um certo ar de praça.
O quintal era plano, redondo
sem trancas nos caminhos.

Sobre os escombros da cidade morta
projectei a minha casa
recortada contra o mar.
Aqui.
Sonho ainda o pilar -
uma rectidão de torre, de altar.
Ouço murmúrios de barcos
na varanda azul.
E reinvento em cada rosto fio
a fio
as linhas inacabadas do projecto.

(Conceição Lima, n 1961, S. Tomé e Príncipe
in "O Útero da Casa", Editorial Caminho, 2004, Lisboa)

Os Heróis

Na raiz da praça
sob o mastro
ossos visíveis, severos, palpitam.
Pássaros em pânico derrubam trombetas
recuam em silêncio as estátuas
para paisagens longínquas.
Os mortos que morreram sem perguntas
regressam devagar de olhos abertos
indagando por suas asas crucificadas.

(Conceição Lima, n 1961, S. Tomé e Príncipe
in "O Útero da Casa", Editorial Caminho, 2004, Lisboa)

quinta-feira, janeiro 13, 2005

Antes do poema

I
Quando o luar caiu
e tingiu de magia os verdes da ilha
cheguei, mas tu já não eras.
Cheguei quando as sombras revelavam
os murmúrios do teu corpo
e não eras.
Cheguei para despojar de limites
o teu nome.
Não eras.
As nuvens estão densas de ti
sustentam a tua ausência
recusam o ocaso do teu corpo
mas não és.
Pedra a pedra encho a noite
do teu rosto sem medida
para te construir convoco os dias
pedra a pedra
no tempo que te consome.
As pedras crescem como vagas
no silêncio do teu corpo
Jorram e rolam
como flores violentas
no silêncio do teu corpo
E sangram. Como pássaros exaustos.
A noite e o vento se entrelaçam
no vazio que te espera.

II
Súbito chegaste
quando falsos deuses subornavam
o tempo.
Chegaste para despedir
a insónia e o frio
Chegaste sem aviso
quando a estrada se abria
como um rio
chegaste para resgatar
sem demora o principio.

Grave o silêncio rodeia o teu corpo
hostil o silêncio agarra o teu corpo.
Mas já tomaste horas e caminhos
já venceste matos e abismos
já a espessura do obô
resplandece em tua testa.
E não bastam pombas em demência
no teu rosto
não bastam consciências soluçantes
em teu rasto
não basta o delírio das lágrimas libertas.

Eu cantarei em pranto
teu regresso sem idade
teu retorno do exílio na saudade
cantarei sobre a terra
teu destino de rebelde.

Para te saudar no mar e no palmar
na manhã do canto sem represas
cantarei a praia lisa e o pomar.

Direi teu nome e tu serás.

(Conceição Lima, n 1961, S. Tomé e Príncipe
in "O Útero da Casa", Editorial Caminho, 2004, Lisboa)

Caboca di Caxangá

Laurindo Punga, Chico Dunga, Zé Vicente
Essa gente tão valente
Do sertão de Jatobá
E o danado do afamado Zeca Lima
Tudo chora numa prima
E tudo quer te traquejá
Caboca di Caxangá
Minha caboca, vem cá
Queria ver se essa gente também sente
Tanto amor como eu senti
Quando eu te vi em Cariri
Atravessava um regato no Patau
E escutava lá no mato
O canto triste do urutau
Caboca, demônio mau
Sou triste como o urutau
Há muito tempo lá nas moita da taquara
Junto ao monte das crivara
Eu não te vejo tu passá
Todo os dia iate a beca da noite
Eu te canto uma toada
Lá debaixo do indaiá
Vem cá, caboca, vem cá
Rainha di Caxangá
Na noite santa do Natal na encruzilhada
Eu te esperei e descontei
Inté o romper da manhã
Quando eu saia do arfará o sol nascia
E lá na vota já se ouvia
Pipiando a acauã
Caboca, toda a manhã
Som triste de acauã

(Catulo da Paixão Cearense, 1863-1946, Brasil
in, "Meu Sertão", Livraria Castilho, RJ, 1920)

U poeta du sertão

Si chora o pinho
Im desafio gemedô
Não hai poeta cumo os fio
Du sertão sem sê doutô
Us óio quente
Da caboca faz a gente
Sê poeta di repente
Que a puisia vem do amor

Não há poeta, não há
Cumo os fio do Ceará!

Dotô fromado, home aletrado
Lá da Côrte
Se quisé mexê comigo
Muito intoncê tem qui vê
Us livro da intiligença
I dá sabença
Mas porém u mato virge
Tem puisia como quê!

Poeta eu sô sem sê dotô
Sou sertanejo
Eu sô fio lá dus brejo
Du sertão do Aracati
As minha trova
Nasce d’arma sem trabaio
Cumo nasce na coresma
Nu seu gaio a frô de Abri

(Catulo da Paixão Cearense, 1863-1946, Brasil
in, "Meu Sertão", Livraria Castilho, RJ, 1920)

Caboca bunita

Quando tu passa nus mato, meu bem
Cantando pulos caminho
Vai seguindo atrás de ti, meu bem
Um bando di passarinho

Ai, caboca bunita
Mi da um beijinho!

Quando tu inda vem de longe, meu bem
Eu já di longe adivinho
Eu sinto istremecê, meu bem
As corda desse meu pinho

Ai, caboca facera
Mi dá um beijinho!

Quando tu samba nus samba, meu bem
Parece um beija-frozinho
Qui avoa di frô in frô, meu bem
Cumo a percura di um ninho

Ai, caboca dengosa
Mi dá um beijinho!

(Catulo da Paixão Cearense, 1863-1946, Brasil
in, "Meu Sertão", Livraria Castilho, RJ, 1920)

quarta-feira, janeiro 12, 2005

O azulão e os tico-ticos

Do começo ao fim do dia,
um belo azulão cantava,
e o pomar que atento ouvia
os seus trilos de harmonia
cada vez mais se enflorava.

Se um tico-tico e outros bobos
vaiavam sua canção,
mais doce ainda se ouvia
a flauta desse azulão.

Um papagaio, surpreso
de ver o grande desprezo
do azulão, que os desprezava,
um dia em que ele cantava
e um bando de tico-ticos
numa algazarra o vaiava,
lhe perguntou: " Azulão,
olha, diz-me a razão
por que, quando estás cantando
e recebes uma vaia
desses garotos joviais,
tu continuas gorgeando,
e cada vez cantas mais?!"

Numas volatas sonoras,
o azulão lhe respondeu:
"meu amigo, eu prezo muito
esta garganta sublime,
este dom que Deus me deu!

Quando há pouco, eu descantava,
pensando não ser ouvido
nestes matos ,por ninguém,
um sabiá que me escutava,
num capoeirão , escondido,
gritou de lá: "meu colega,
bravo!....Bravo!...Muito bem!"

Queira agora me dizer:-
quem foi um dia aplaudido
por um dos mestres do canto,
um dos cantores mais ricos
que caso pode fazer
das vaias dos tico-ticos?!"

(Catulo da Paixão Cearense, 1863-1946, Brasil
in, "Meu Sertão", Livraria Castilho, RJ, 1920)

Vassuncês diga o que é

Vassuncês diga o que é
Um coração de home véio
Que quanto mais véio fica,
Mais aprecia uma muié!

Vassuncês ri? Falo sério.

O coração do home véio
é um burro véio trotando,
dáqui e dali trupicando
na derradeira viage,
que faz lá prô cimitério,
comendo pelos caminhos
um resto seco de espinho
que vae topando no chão ,
bebendo uns pingo de orváio
dos óios – as duas cacimbas
da fonte do coração! ....

Em riba dúma cangáia
duas muié carregando
cum o peso todo da idade:
uma, já morta: a Esperança,
outra, inda viva: a Saudade,...

Até cair cum a Esperança
e o cadáver da Saudade
e os frutos podre dos anos
que ele leva no jacá,
prá arrecebê, afiná,
o beijo de amô da boca
da namorada dos véios,
que toda mágua alivia,
que toda a pena consola!...
A Morte, patrão, a Morte!
essa cabloca fié!
Muda... Surda...Cega e fria,
que depois de uma viola,
é a mais mió das muié.

(Catulo da Paixão Cearense, 1863-1946, Brasil
in, "Meu Sertão", Livraria Castilho, RJ, 1920)

Chico Beleza

Pulas areia da istrada,
Cum as perna já meia bamba,
Um dispotismo de gente
Vinha cantando num samba,
Fazendo grande berrêro!

Quem puxava a istruvunca
Era o Manué Cachacêro,
O mais grande dos violêro,
Que im todo sertão gimia!
E era ansim que ele cantava
E no canto ansim dizia:

"Diz os véiu de outras éra
que quando São João sintia
sôdade de Jesú Cristo
e de sua cumpanhia,
garrava logo na viola,
prá chorá sua sôdade
e a sua malincunía!

Entonce logo os apóstro,
Assombrando o istruvío,
Cada um seu pé de verso
Cantava no desafío

A Mãe de Cristo chorava
e as agua que derramava
da fonte do coração,
caia nas corda santa
da viola de São João!

Pru via disto é que o pinho,
instrumento sem rivá,
quando se põe-se chorando,
se põe-se a gente a chorá".

Foi aí, nesse festêro,
que vi o Chico Sambêro,
um sambadô sem sigundo,
mas porêm feio ,tão feio,
que toda gente dizia
que foi o hôme mais feio
que Deus butou neste mundo!

Tinha cara de preguiça,
cabeça de mono véio,
e pescoço de aribú!
A boca, quando se ria,
taquarmente parecia
a boca de um cangurú!
Tinha as oreias de porco
e os dentes de caitetú!
Tinha barriga de sapo,
e o nariz, impipocado,
figurava um genipapo!

Os braços era taliquá
dois braços sirigaitado
d' um veio tamanduá!
Os óios - dois berimbau!
As pernas finas alembrava
as pernas d' um pica pau!
O queixo de capivara
tinha um bigode pru riba,
que quase tapava a cara!
O cabelo surupinho
era, sem tirá nem pô,
cabelo de porco espinho!

Im conclusão, prá findá,
tinha os dedos de gambá,
os hombros redondo e chato
e os pé que nem pé de pato!

Inda mais prá cumpletá
aquela xeringamança
e feiúra de pagóde,
o hôme quando se ria,
era um cavalo rinchando,
e quando táva suando,
tinha um ôroma de bóde.

Apois bem. Esse raboeza,
que era prú todas as bocas
chamado : Chico Beleza;
esse horríve lobizome,
que era mais feio que a fome,
mais feio que o Demo inté
quando as pernas sacudia,
sambando nargum banzé
enfeitiçando as viola,
apaixonando as muié,
trazia tôda as cabôca,
cumo um capaxo, dibaxo,
das duas sóla do pé!!!

(Catulo da Paixão Cearense, 1863-1946, Brasil
in, "Meu Sertão", Livraria Castilho, RJ, 1920)

A flor do maracujá

Encontrando-me com um sertanejo
Perto de um pé de maracujá
Eu lhe perguntei:
Diga-me caro sertanejo
Porque razão nasce roxa
A flor do maracujá?

Ah, pois então eu lhi conto
A estória que ouvi contá
A razão pro que nasci roxa
A flor do maracujá

Maracujá já foi branco
Eu posso inté lhe ajurá
Mais branco qui caridadi
Mais brando do que o luá

Quando a flor brotava nele
Lá pros cunfim do sertão
Maracujá parecia
Um ninho de argodão

Mais um dia, há muito tempo
Num meis que inté num mi alembro
Si foi maio, si foi junho
Si foi janero ou dezembro

Nosso sinhô Jesus Cristo
Foi condenado a morrer
Numa cruis crucificado
Longe daqui como o quê

Pregaro cristo a martelo
E ao vê tamanha crueza
A natureza inteirinha
Pois-se a chorá di tristeza

Chorava us campu
As foia, as ribera
Sabiá também chorava
Nos gaio a laranjera

E havia junto da cruis
Um pé de maracujá
Carregadinho de flor
Aos pé de nosso sinhô

I o sangue de Jesus Cristo
Sangui pisado de dô
Nus pé du maracujá
Tingia todas as flor

Eis aqui seu moço
A estoria que eu vi contá
A razão proque nasce roxa
A flor do maracujá.

(Catulo da Paixão Cearense, 1863-1946, Brasil
in, "Meu Sertão", Livraria Castilho, RJ, 1920)

1º Ato

S. Pedro
Que é isto?! Aqui? No Céu?! Profanação!!
Boêmio
Senhor! Não repareis! É uma surpresa!
Venho, apenas, cantar, festivamente,
em vosso aniversário uma canção!
S. Pedro
Mas na casa de Deus?!... E com um violão?!
Retire-se daqui!
Boêmio
Senhor, perdão!
Que havia de trazer-vos em um dia
tão grande, tão bonito, como o vosso,
de tanto amor, tanta recordação?!
Eu vos chamo, Senhor, vossa atenção.
Este instrumento representa a Música,
esta flor, que colhi no mato virgem,
representa a formosa Natureza,
os versos do meu canto representam
a divina Poesia, e essa trindade
não merece, Senhor, vosso desdém!

Pois Natureza, Música e Poesia
são as únicas coisas de sublime
que o mundo, de onde venho, em si contém.
Se eu venho tão somente com um violão,
é porque, desde que desencarnei,
desde hoje de manhã, desencarnando
vaguei por toda a Terra, procurando
uns músicos, que, enfim, não encontrei,
para, enquanto fizésseis vossas preces,
como estáveis fazendo, agora mesmo,
oferecendo a Deus a vossa oblata,
entrássemos no Céu, com uma cantata,
com cavaquinhos, flautas e violões
acompanhando as vossas orações,
com uma bela e saudosa serenata.

(Catulo da Paixão Cearense, 1863-1946, Brasil
in, "Meu Sertão", Livraria Castilho, RJ, 1920)

O marruêro

O canto alegre dos galo
no sertão amiudava!...
Nos taquará das lagoa
as saracura cantava!...
Cantando passava um bando
das verde maracanã!
Fermosa, cumo a cabôca,
Vinha rompendo a minhã!

O vento manso da serra,
vinha acordando os caminho!
Vinha das mata chêrosa
um chêro de passarinho!...

Lá, no fundo d'uma gróta,
adonde um córgo gimia,
gragaiava as siriêma
cum o fresco nacê do dia.

Uma araponga, atrepada
n'um braço de mato, im frô,
gritava, como se fosse
os grito da minha dó!!

E a sabiá, lá nos gaio
da larangêra, serena,
cantava, cumo si fosse
uma viola de pena!

Um passarinho inxirido,
mardosamente iscundido
nas fôia de um tamburí,
satisfeito, mangofando,
de mim se ria, gritando
lá de longe: "bem te vi"!

Chegando na incruziada,
despois do dia rompê,
sipurtei o meu segredo
n'um véio tronco de ipê.

Dênde essa hora, inté hoje,
eu conto as hora, a pená!...
Eu vórto a sê marruêro!
Vou vivê com os marruá!

Eu tinha o corpo fechado
prá tudo o que é marvadez!
Só de surucucutinga
eu fui mordido três vez!...

Dos marruá mais bravio,
que nos grotão derribei,
munta pontada, sá dona,
munta chifrada eu levei.

Prá riba de mim, Deus pode
mandá o que ele quizé!

O mundo é grande, sá dona!...
Grande é o amô!... Grande é a fé!

Grande é o pudê de Maria,
isposa de São josé!...
O Diabo, também, sá dona,
foi grande!... Cumo inda é!!!

Mas porém, nada é mais grande,
mais grande que Deus inté,
que uma cornada dos chifre
dos óio d'uma muié...

(Catulo da Paixão Cearense, 1863-1946, Brasil
in, "Meu Sertão", Livraria Castilho, RJ, 1920)

Luar do sertão

Não há ó gente, ó não
Luar como esse do sertão
Não há ó gente, ó não
Luar como esse do sertão

Oh que saudade
Do luar da minha terra
Lá na serra branqueando
Folhas secas pelo chão
Esse luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade
Do luar lá do sertão

Se a lua nasce
Por detrás da verde mata
Mais parece um sol de prata
Prateando a solidão
E a gente pega
Na viola que ponteia
E a canção é a lua cheia
A nos nascer do coração

Se Deus me ouvisse
Com amor e caridade
Me faria essa vontade
O ideal do coração:
Era que a morte
A descantar me surpreendesse
E eu morresse numa noite
De luar no meu sertão

(Catulo da Paixão Cearense, 1863-1946, Brasil
in, "Meu Sertão", Livraria Castilho, RJ, 1920)

O lenhador

Um lenhadô derribava
as árve, sem percisão,
e sempe a vó li dizia:
meu fio: tem dó das árve,
que as árve tem coração.

O lenhadô, num muchocho,
e rindo, cumo um sarvage,
dizia que os seus conseio
não passava de bobage.

Às vez, meu branco, o marvado,
acordano munto cedo,
pegava nu seu machado,
e levava o dia intero,
iscangaiano o arvoredo.

E a vó, supricano im vão,
sempe, sempe li dizia:
meu fio: tem dó das árve,
que as árve tem coração.

Numa minhã, o mardito,
inda mais bruto que os bruto,
sem fazê caso dos grito
da sua vó, que já tinha
mais de setenta janero,
botô nu chão um ingazero,
carregadinho de fruto.

Doutra feita o arrenegado
inda fez munto pió:
disgaiô a laranjera
da pobrezinha da vó,
uma véia laranjera,
donde ela tirô as frô
prá levá no seu vistido,
quando, virge, si casô,
há mais de cincuenta ano,
cum o difunto, o falicido.

E a vó, supricano im vão,
sempe, sempe li dizia:
meu fio: tem dó das árve,
que as árve tem coração.

Do lado do capinzá,
adonde pastava o gado,
tava um grande e véio ipê,
que o avô tinha prantado.

Despois de levá na roça
cuma inxada a iscavacá,
debaxo daquela sombra,
nas hora quente do dia,
vinha o véio discansá.

Se era noite de luá,
ali, num banco de pedra,
cuma viola cunversano,
o véio, já caducano,
rasgava o peito a cantá.

Apois, meu branco, o tinhoso,
o bruto, o mau, o tirano,
a fera disnaturada,
um dia jogô no chão
aquela árve sagrada,
que tinha mais de cem ano.

Mas porém, quando o mardito
isgaiava o grande ipê,
viu uns burbuio de sangue
do tronco véio corrê!
Sacudiu fora o machado,
e deu de perna a valê!

E foi correno...correno!

Cada tronco que ia vendo
das árve, que ele torô,
era um braço alevantado
dum home, meio interrado,
a gritá: Vai-te, marvado!
Assassino! Matadô!

E foi correno! correno!

Cada vez curria mais!

Mas porém, quando já longe,
uma vez oiô para atrás,
vendo o ipê alevantado,
cumo um home insanguentado,
cum os braço todo torado...
cada vez curria mais!

Na barranca do caminho,
abandonado, um ranchinho,
entre os mato entonce viu!
Que vê si apara e discansa,
e o ranchinho por vingança,
im riba dele caiui!

E foi correno, e gritano!
e as árve, que ia topano,
o que má pudia vê,
cumo se fosse arrancada
cum toda a raiz da terra,
numa grande disparada
ia atrás dele a corrê!

Na boca da incruziada,
veno uma gruta fechada
de verde capuangá,
o home introu pulo mato,
que logo que viu o ingrato,
de mato manso e macio,
ficô sendo um ispinhá!

E foi outra vez correno,
cansado, pulos caminho!

Toda a pranta que incontrava,
o capim que ele pisava,
tava crivado de ispinho...

Curria e não aparava!

Ia correno sem tino,
cumo o marvado, o assassino,
que um inocente matô!

Mas porém, na sua frente,
o que ele viu, de repente,
que, de repente, impacô?

Era um rio que passava,
ali, naquele lugá!
O rio tinha uma ponte:
o home foi atravessá!

Pôs o pé.. Ia passano.
E a ponte rangeu quebrano,
e toca o bicho a nadá!

O bruto tava afogano,
mas porém, sempre gritano:
socorro, meu Deus, socorro
socorro, que eu vô morrê!

Eu juro a Deus, supricano,
nunca mais na minha vida
uma só árve ofendê!
Entonce, um verde ingazero
que tava im riba das agua,
isticou um braço verde,
dando ao home a sarvação!

O home garrô no gaio,
no gaio cum os dente aferra,
foi assubino, assubino...
e quando firmô im terra,
chorava cumo um jobão!

Bejano o gaio e chorano,
dizia: Munto obrigado!
Deus te faça abençoado,
todo ano tê verdô!
Vô rebentá meu machado!
Não serei mais lenhadô!

Depois desta jura santa,
pra tê de todas as pranta
a graça, o perdão intero
dos crime de home ruím,
foi se fazê jardinero,
e não fazia outra coisa
sinão tratá do jardim.

A vó, que já carregava
mais de setenta janero,
dizia que neste mundo
nunca viu um jardinero
que fosse tão bom assim!

Drumia todas as noite,
dexano a jinela aberta,
pra iscutá todo o rumô,
e às vez, inté artas hora,
ficava, ali, na jinela,
uvindo o sonho das frô!

De minhã, de minhã cedo,
lá ia sabê das rosa,
dos cravo, das sempreviva,
das maguinólia cherosa,
se tinha durmido bem!

Tinha cuidado cum as rosa
que munta vó carinhosa
cum os seus netinho não tem!
Dizia a uma frô: Bom dia!
Como tá hoje vremêia!
Dizia a outra: Coitda!
Perdeu seu mé! Foi robada!
Já sei quem foi! Foi a abêia!

Despois, cum pena das rosa,
que parece que chorava,
batia leve no gaio,
e as rosa disavexava
daqueles pingo de orvaio!

Ia panhano do chão
as frô que no chão cai!

Despois, cum as costa da mão,
alimpano os pingo dágua,
que vinha do coração,
batia im riba do peito,
cumo quem faz confissão.

Quando no sino da ingreja
tocava as Ave Maria,
no jardim, ajueiado,
pidia a Deus pulas arma
das frô, que naquele dia
no jardim tinha interrado!

E agora, quando passava
junto das árve, cantano,
chei dágua carregano
o seu véio regadô,
as árve, filiz, contente,
que o lenhadô perduava,
no jardinero atirava
as suas parma de frô!

(Catulo da Paixão Cearense, 1863-1946, Brasil
in, "Meu Sertão", Livraria Castilho, RJ, 1920)

terça-feira, janeiro 11, 2005

Volúpia

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade…
A nuvem que arrastou o vento norte…
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço…
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças…

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

A uma rapariga

Abre os olhos e encara a vida! A sina
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!
Por sobre os lamaçais alteia pontes
Com tuas mãos preciosas de menina.

Nessa estrada da vida que fascina
Caminha sempre em frente, além dos montes!
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!
Beija aqueles que a sorte te destina!

Trata por tu a mais longínqua estrela,
Escava com as mãos a própria cova
E depois , a sorrir, deita-te nela!

Que as mãos da terra façam, com amor,
Da graça do teu corpo, esguia e nova,
Surgir à luz a haste de uma flor!...

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

?

Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a anadorinha,
E perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Tereza em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
- Sem nos dar braços para os alcançar?

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

A voz da tília

Diz-me a tília a cantar: "Eu sou sincera,
Eu sou isto que vês: o sonho, a graça;
Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,
Este ar escutultural de bayadera...

E de manhã o sol é uma cratera,
Uma serpente de oiro que me enlaça...
Trago nas mãos as mãos da Primavera...
E é para mim que em noites de desgraça

Toca o vento Mozart, triste e solene,
E à minha alma vibrante, posta a nu,
Diz a chuva sonetos de Verlaine..."

E, ao ver-me triste, a tília murmurou;
"Já fui um dia poeta como tu...
Ainda hás-de ser tília como eu sou..."

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

Espera...

Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!

Sou a dona dos místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços...
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera... espera... ó minha sombra amada...
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!...

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

sábado, janeiro 08, 2005

Crucificada

Amiga...noiva...irmã...o que quiseres!
Por ti, todos os céus terão estrelas,
Por teu amor, mendiga, hei-de merecê-las
Ao beijar a esmola que me deres.

Podes amar até outras mulheres!
- Hei-de compor, sonhar palavras belas,
Lindos versos de dor só para elas,
Para em lânguidas noites lhes dizeres!

Crucificada em mim, sobre os meus braços,
Hei-de poisar a boca nos teus passos
Pra não serem pisados por ninguém.

E depois...Ah! Depois de dores tamanhas
Nascerás outra vez de outras entranhas,
Nascerás outra vez de uma outra Mãe!

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

Ambiciosa

Para aqueles fantasmas que passaram,
Vagabundos a quem jurei amar,
Nunca os meus braços lânguidos traçaram
O voo dum gesto para os alcançar...

Se as minhas mãos em garra se cravaram
Sobre um amor em sangue a palpitar...
- Quantas panteras bárbaras mataram
Só pelo raro gosto de matar!

Minha alma é como a pedra funerária
Erguida na montanha solítária
Interrogando a vibração dos céus!

O amor dum homem? - Terra tão pisada,
Gota de chuva ao vento baloiçada...
Um homem? - Quando eu sonho o amor de um Deus!...

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

Amar!

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

Outonal

Caem as folhas mortas sobre o lago;
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio… Olha, anoitece!
- Brumas longínquas do País do Vago…

Veludos a ondear… Mistério mago…
Encantamento… A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago…

Outono dos crepúsculos doirados,
De púrpuras, damascos e brocados!
- Vestes a terra inteira de esplendor!

Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que eu soluço a delirar de amor…

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

Supremo enleio

Quanta mulher no teu passado, quanta!
Tanta sombra em redor! Mas que me importa?
Se delas veio o sonho que conforta,
A sua vinda foi três vezes santa!

Erva do chão que a mão de Deus levanta,
Folhas murchas de rojo à tua porta...
Quando eu for uma pobre coisa morta,
Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!

Mas eu sou a manhã: apago estrelas!
Hás-de ver-me, beijar-me em todas elas,
Mesmo na boca da que for mais linda!

E quando a derradeira, enfim, vier,
Nesse corpo vibrante de mulher
Será o meu que hás-de encontrar ainda...

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

Mendiga

Na vida nada tenho e nada sou;
Eu ando a mendigar pelas estradas...
No silêncio das noites estreladas
Caminho, sem saber para onde vou!

Tinha o manto do sol...quem mo roubou?!
Quem pisou minhas rosas desfolhadas?!
Quem foi que sobre as ondas revoltadas
A minha taça de ouro espedaçou?

Agora vou andando e mendigando,
Sem que um olhar dos mundos infinitos
Veja passar o verme, rastejando...

Ah! quem me dera ser como os chacais
Uivando os brados, rouquejando os gritos
Na solidão dos ermos matagais!...

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

quinta-feira, janeiro 06, 2005

A nossa casa

A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho...que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,

Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro -- tão bom! -- dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

Noitinha

A noite sobre nós se debruçou...
Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!
O luar, pelas colinas, nesta hora,
É água dum gomil que se entornou...

Não sei quem tanta pérola espalhou!
Murmura alguém pelas quebradas fora...
Flores do campo, humildes, mesmo agora,
A noite os olhos brandos lhes fechou...

Fumo beijando o colmo dos casais...
Serenidade idílica das fontes,
E a voz dos rouxinóis nos salgueirais...

Tranquilidade...calma...anoitecer...
Num êxtase, eu escuto pelos montes
O coração das pedras a bater...

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

As minhas mãos

As minhas mãos magritas, afiladas,
Tão brancas como a água da nascente,
Lembram pálidas rosas entornadas
Dum regaço de Infanta do Oriente.

Mãos de ninfa, de fada, de vidente,
Pobrezinhas em sedas enroladas,
Virgens mortas em luz amortalhadas
Pelas próprias mãos de oiro do sol poente.

Magras e brancas...Foram assim feitas...
Mãos de enjeitada porque tu me enjeitas...
Tão doces que elas são! Tão a meu gosto!

Pra que as quero eu -- Deus! -- Pra que as quero eu ?!
Ó minhas mãos, aonde está o Céu?
Aonde estão as linhas do teu rosto?

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

Mistério

Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.

Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende,
Murmúrios por caminhos desolados.

Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas...

Talvez um dia entenda o teu mistério...
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

Passeio ao campo

Meu amor! Meu amante! Meu amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!

Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...
Pele doirada de alabastro antigo...
Frágeis mãos de madona florentina...
- Vamos correr e rir por entre o trigo! -

Há rendas de gramíneas pelos montes...
Papoilas rubras nos trigais maduros...
Água azulada a cintilar nas fontes...

E à volta, Amor... tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras...

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)

Eu

Até agora eu não me conhecia.
Julgava que era Eu e eu não era
Aquela que em meus versos descrevera
Tão clara como a fonte e como o dia.

Mas que eu não era Eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, não o dissera...
Olhos fitos em rútila quimera
Andava atrás de mim...e não me via!

Andava a procurar-me -- pobre louca!
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!

E esta ânsia de viver, que nada acalma,
É a chama da tua alma a esbrasear
As apagadas cinzas da minha alma!

(Charneca em Flor
Florbela Espanca, 1894-1930, Portugal)