quinta-feira, janeiro 27, 2005

O pastor

Sinos a defuntos! ai, quem morreria!
Olhai, foi o pobre do Ti-Zé-Senhor!...
Velho tão velhinho nenhum outro havia...
P’ra cumprir cem anos lhe faltava um dia,
Há noventa e quatro que era já pastor.

Zagalzinho alegre, desde tenra infância
Já de surrãozito cheio a tiracol,
A escalar montanhas com ardor, com ânsia,
Por pastagens bravas d’auroral fragrância,
Branqueadinho a neve e doiradinho a sol!...

A deserta, imensa, rústica paisagem,
Cordilheiras, campos, astros d’oiro, luar,
Tudo se invertera, por continua imagem,
Em heróica, em livre candidez selvagem
Na extasiada flor do seu ingénuo olhar.

Ordenhado o leite, cantarinho cheio,
Ala para a aldeia, por manhãs sonoras,
Mordiscando a côdea do seu pão centeio,
Arrancando à frauta um pastoril gorjeio,
Rapinando às sebes chupa-méis e amoras.

Fez-se moço e grande pelas serras brutas,
Onde as águias pairam, onde o roble medra,
E onde os fragaredos bárbaros, com grutas,
Se encastelam crespos, infernais, em lutas,
Tal como tormentas de trovões de pedra!

Cada serrania alcantilada e brava,
Sob o azul d’Agosto, cor de fogo e pó,
Recozida a febre e atordoada em lava,
Lagrimeja apenas duma rocha cava
Pranto, que o bebera uma ovelhinha só!

E por essas fulvas, íngremes ladeiras
Pastoreava o gado, quase morto já
Só rochedos tristes, nus como caveiras,
E zambulhos, zimbros, tojos, cornalheiras,
Acres para pragas duma boca má!

E depois as torvas, negras invernadas,
Noites formidandas, lobos a ulular,
Desmoronamentos, temporais, nevadas,
Carcavões abertos pelas enxurradas,
Troncos de sobreiros de raiz ao ar!...

Oh, as noites tristes, alapado e quedo,
Num covil de feras, ou algar deserto!...
E dormia ao lume sem temor, sem medo,
Pois Nossa – Senhora, Virgem do Degredo,
Na ermidinha branca lhe ficava perto...

Mas no mês de Março píncaros maninhos,
Montes cenobitas, d’ossos e burel,
Vestem-se de trevos e de rosmaninhos,
Com sorrisos d’oiro que alvoroçam ninhos,
E destilam favos de inocência e mel!...

Era então alegre como o Sol nascente,
Mais feliz nos campos do que Deus no altar!
Anhos e cabritos, leite rescendente,
Pastos tão mimosos, que quisera a gente
Transformar-se em ave para os não calcar!

Tanto Abril florido, tanta calma adusta,
Tantas inverneiras, sem pesar ou dor,
Tinham-lhe gravado na expressão robusta
Como que uma sombra de grandeza augusta,
Junta a uma inocência matinal de flor.

Que importavam gelos, ventanias, feras?
Peito nu, aberto; construção de touro!
Quase me admirava que nas primaveras
Desse peito rude não brotassem heras,
Margaridas, lírios com abelhas douro!

Ao relento a cama no orvalhado pasto,
Cerca dos carneiros e dos bons lebréus;
Que divino leito, primitivo e casto,
Todo embalsamado de serpol, mentrasto,
Sob a paz imensa do perdão de Deus!...

E esse gigantesco latagão corado
Era, como os santos ermitões, frugal:
Duas azeitonas, queijo do seu gado,
E de rala escura meio pão migado
Num caldeiro d’água com azeite e sal.

Não jantava morte, assassinato, dores,
Hecatombes tristes que jantamos nós;
E por isso ria como riem flores,
Atraindo em bandos aves de mil cores,
Feiticeiro simples, com o olhar e a voz!...

Sua rude frauta de pastor ouvindo
Na misteriosa luz crepuscular,
Iam-se as estrelas uma a uma abrindo,
E desabrochava pelo azul infindo
Soluçante a Lua como um nenufar!...

Que trinados vivos, d’argentino encanto
Ai, missa do galo, lhe inspiravas tu,
Nessa frauta, quando de cajado e manto
Ia deitar loas ao menino santo
No altar-mor da igreja sorridente e nu!

Fora lá criança, mágica ventura
Centenário quase a derradeira vez...
E gorjeava a frauta com igual candura,
Pois a alma virgem, luminosa e pura,
Conservara-a sempre como Deus a fez.

Nela penetrava, nela se embebia
Tudo que é inocência, riso, amor, clarão
Frémito de pomba, voz de cotovia,
Cânticos dos montes ao nascer do dia,
Lágrimas dos astros pela escuridão!...

Longe dos Pecados de raivosas presas,
Belzebus famintos d’olhos de metal,
Longe das terríveis tentações acesas
No torpor dos leitos, na embriaguez das mesas,
Pululantes larvas, vibriões do Mal,

O pastor ditoso envelheceu ridente
Por despenhadeiros, alcantis, calvários,
E na fronte augusta de ermitão, de crente,
Lhe geavam anos luminosamente,
Como as pombas brancas sobre os campanários!

Das ovelhas meigas – Íntimas heranças! –
Recolhera toda a abnegação cristã
Oh, sejais benditas, ovelhinhas mansas,
Que com vosso leite sustentais crianças,
E vestis os pobres com a vossa lã!

Aos noventa anos, festival, risonho,
Álamo gigante d’água viva ao pé;
Sim! inda na boca risos de medronho.
E nos olhos lentos, a tremer em sonho,
Dois miosótis virgens de candura e fé!

Com seu manto branco de burel grosseiro,
Cãs de puro arminho, báculo na mão,
Alembrava um santo feito pegureiro,
Que eu desejaria sobre o altar cruzeiro
Duma ogiva d’astros, em adoração!

Centenário quase, recordava aspectos
De lendário tronco num feliz vergel,
Moribundo em meio de seus verdes netos,
Com a Providência a agasalhá-lo em fetos,
Com abelhas d’oiro inda a nutri-lo a mel,

E que surdo à voz dos ledos passarinhos,
E que cego ao éter de esplendor ideal,
Com o ai extremo lança dois raminhos,
A chamar ainda por canções de ninhos
E a dizer aos astros um adeus final!

Tal o pastor santo, já de vez caldo,
Já corcovadinho, flébil, quase morto,
Arrimado ao velho báculo torcido,
Nada ouvindo, nada, com o duro ouvido,
Vagamente olhando com o olhar absorto,

Ia pelos montes na tristeza infinda
Dum coração ermo, com a morte aceite,
A pedir aos anjos para ouvir ainda
Badalar ovelhas numa noite linda,
Quando a Lua os campos alagasse em leite!

Seu bisavô fora guardador de gado,
Guardador de gado seu avô, seu pai;
Criou filho e netos como foi criado,
E morreu ditoso porque o seu cajado
Seu rebanho ainda pastoreando vai!

Cândido, na paz das solidões dormentes,
Ignorando o mundo rancoroso e vil
Aos cem anos inda, com a fé dos crentes,
Punha olhos claros, simples, inocentes,
Na estrelinha d’Alva das manhãs d’Abril!

Levará no esquife para os céus a palma
Da grandeza mansa, da virtude austera.
Realizou no mundo a perfeição da Alma
Porque foi bondoso como a Lua é calma,
Porque foi um santo sem saber que o era!...

Vós, ó semideuses do entremez da Glória,
Césares, tiranos, capitães, heróis,
Épicas figuras de imortal memória,
Que de serro em serro iluminais a história
Como crepitantes, trágicos faróis,

Na região do Imenso, no Infinito puro,
Onde me deslumbra, como um Sol, Jesus,
Não sois mais que larvas a tremer no escuro,
Que ninguém conhece, que eu em vão procuro
Com meus olhos calmos nesse mar de luz!

E o pastor d’ovelhas, que comeu centeio,
Que viveu nos montes, que dormiu nas grutas,
Tão asselvajado, cabeludo e feio,
Que disséreis quase que esse monstro veio
Da matriz da terra, como as pedras brutas,

Já liberto agora da Ilusão do mundo
Fez-se em anjo branco, inda outra vez pastor
Milhões d’astros seguem seu olhar jucundo,
São rebanhos d’almas pelo azul profundo
As ovelhas novas do Ti-Zé-Senhor!...

(Guerra Junqueiro, 1850-1923, Portugal
in "Os Simples")