sábado, julho 02, 2005

Oh pedras de sangue

Oh pedras de sangue,
Oh chagas de sal,
Oh Marga do Mangue,
Palmeira letal,
Macaca de Fogo,
Minha mão no vento,
Meu amor perdido
Nos gestos do tempo.
Marga Victoriosa,
Arnedo de cinza,
Monte Escuro claro
Nas lavas mugidas
De carne sangrenta
Viático a vidas.
O lótus do Nilo
Te assanha as feridas
Que minh'alma unguenta.

A Rosa de Alexandria
Levou a minha alegria.
O relógio de Geneve
Parou à uma na neve:
Levaram-na os loucos tristes,

Descalça vai pela estrada
Marga dorida raptada
Na Suíça federada
Que só pela touca é louca.

O sequestro vai guiado
Pela baba consanguínea,
Ardem palácios à chuva:
Marga, casada mil vezes,
Ficará sempre viúva?

Olhai o Cedro do Líbano,
Manhas que na casca tem!
Na arte é religioso
Mas não dá fé a ninguém.

- Marga, foge! -
Digo-te: - Foge a tempo!
Só assim chegarás à minha choça,
Só assim ele te dá o apartamento
Mentindo-te o mais que possa.

Então, com Genevieve
Pastoreando Paris,
Dos tectos do Quai d'Orsay
Teu sangue tudo me diz.
Revenons, revenons,
La lithanie!
Mordons
La queue du licorne,
Sauvons la face en sursis
Avant que la nuit ne tombe
Et la destinée ne borne
Les chances d'envol de la colombe.


Foge, Marga! Compra vacas
Como quem salva mulheres
Com quadros impressionistas:
Juntos, na vente aux enchères
Para não darmos nas vistas.

A espada de São Miguel
Sangra ao meio da balança:
Pesaste amor contra fel
Nas tuas mãos de criança.

E chora teus francos
Que ele vende suas tintas:
Os teus bezerros estão mancos
Com pena de que me mintas.

Afinal, tudo tão simples
Em meia dúzia de versos
Como orvalho na Fajã!
Lá falámos os farrapos
Dos teus vestidos dispersos
Na cama, até de manhã.

Ouves? São os sapos, Marga,
Já há sol na telha vã
Que uma aboboreira enflora.
Eu sou o que tem a telha,
Marga, para toda vida:
Está tanto frio lá fora!
Entra, dorme, Margarida!

(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)