terça-feira, agosto 30, 2005

carta à mulher amada sobre a morte de vitorino nemésio

quando ontem recebi o seu recado
comi uma laranja em memória do nemésio
imagino os amigos o david ainda fresco
o irmão que morreu e agora esta notícia
e cuido em si em mim enquanto penso nele
tivemos no entanto alguma sorte: ele não era
«o nosso querido amigo» mas porém
a mais íntima voz das respeitadas

comi uma laranja achei-a dulce et utile
própria da circunstância horaciana
de haver augusto em século que o não é
salvo na poesia muito teoricamente
(acha que é de mudar o meu registo?)
ele é agora chamazinha em deus
que pra ele existia e para mim não
mas sempre fui voraz, meditativo

ah rapsodo como a palavra transfigura a morte
e da experiência alheia se apropria
na poeira das coisas o teclado
tange a cinza possível e entre dentes vou
mordendo a polpa ao fruto e me adequo
com certa gravidade aos detritos do ofício
aquilo que se rasga emenda se rasura
mesmo se improvisando num terreiro

«não se pensa a morte: dá-se» escreve o que ontem
atingiu seu limite. lembra-se? nós falámos
a esse respeito dentro dum automóvel
foi salvo erro depois do alto da lixa
e eu disse tanta asneira que o nemésio
até cabia nela por ser bom
e perceber como eu guiava amando-a
falando assim por lhe arrastar a asa

contei-lhe do poema da colóquio
de ele i falar na vulva e sobre a pedra
de canto e de recanto eros rejuvenesce
os que toca non eos vult perdere
nec prius dementat e lhes arroja
as vogais prometidas a laranja
outro mandava dançá-la às raparigas
e destas se comovia vitorino

disso estou certo quanto encantamento
de poder as palavras transformar
em carícias penugens vice-versa
e contudo o seu porte era modesto
todo interior o ofício bafo humilde
de aparelhar por dentro seu tutano
e quanto corpo fino e flavo atravessou
decerto aqueles óculos (cabrinhas que ele teve)

nem sei porquê escrevo estas oitavas
as crianças vêem televisão eu penso em si
talvez escute o requiem de fauré
tão íntimo e prosaico à vida do nemésio
escrito para as almas nada feito
prõs rituais da morte pompas fúnebres
das diferenças de classe ou de estatuto
se eu falasse de hölderlin do jovem hegel

mas falo para si com gravidade
de nisto tudo estar a amá-la mais
como se querendo compensar a perda
que tão egoistamente sinto do nemésio
que era autor meu de tê-lo tido um pouco
sempre ali disponível pra relê-lo
onde inda está o bicho harmonioso
mas tem o bicho humano tais remorsos

porque me lembra alguém desta família
que eu vi morrer no hospital do carmo
e esse verso do sena que me acode
«de morte natural nunca ninguém morreu»?
e hoje não me faz falta nenhuma essa pessoa
salvo a de então eu ter-me comovido
eram os dezassete anos liceais
lirismo juvenil inda familiar

e se isto é melancólico como então se eu
lhe disser que me sinto hoje neste momento
trisavô bisavô do vitorino?
que me vai perguntar ou responder?
pode haver tanta coisa inesperada
e tanta surpreendida mas sei duma
que lha digo em directo meu amor
você pode calar mas não vai rir

e acho que devia estar aqui
semicerrando os olhos estirando
o seu próprio embaraço acolhedor
das minhas confusões e o corpo onde
quando me envolvo não penso nestas coisas
(nem queria regressar de humedecidos
meandros selva oscura conhecimento
ah sim conhecimento é a palavra)

tudo isto pra dizer-lhe meu amor
que é também amor esta serena
evocação da morte junto a si
onde o tempo não passa e onde passa
e onde às vezes parecemos conseguir
tocar no fundo o coração das coisas
doce e silente coração que as coisas
para o nemésio tinham e pró caeiro não.

21.2.78

(Vasco Graça Moura, n 1942, Portugal
in "Poesia 1993-1995", Círculo de Leitores, 2001)