Entregaste-me à partida
Fronha da tua almofada,
Quentinha do teu cabelo,
Com sua renda comprida
E muito bem embrulhada
Como se fosse um novelo.
Claro que não foste tu
Quem se lembrou do presente
(Por modéstia, já se vê):
Fui eu, que deitei o cu
Na tua caminha, - oh!
Sem lá ter dormido, não:
Que a gente vive tão castos
Em certas ocasiões,
Que parecemos dois irmãos
Ou uns peregrinos de Santa
Que viessem de muito longe
(Eu o peregrino) e um monge
(Neste caso uma monja)
Lhe cedesse, pra repouso,
A sua própria tarimba
Ainda quente do seu hábito
E marcada do seu corpo
Suado pela cacimba.
Pois foi assim da tua fronha:
Tu ma deste, - que eu queria
Cabeça, almofada e tudo:
Mas tinha muita bagagem,
És prudente e precavida:
Por isso veio a trouxinha
Dada em segredo, à partida.
Na primeira noite, ausente,
Confesso que ma esqueci...
De resto, tu vens co a gente:
Sempre tive a sensação
De dormir ao pé de ti.
Mas hoje de manhã, na insónia,
Resolvi abrir o embrulho,
Estender o quadradinho
De pano no travesseiro,
Com uma certa cerimónia,
Sorrateiro e sem barulho,
Desdobrando, lento, o linho
Para não perder o cheiro,
Que vai das rosas ao vinho.
Ah! que não era preciso!
As violetas do entremeio
Tinham faro do teu seio
E do teu próprio juízo.
Mal o fiz, a cama, o quarto,
Nice, a França e a Itália juntas,
Tudo ficou perfumado
Daquela bomba de amor,
Como se uma margaridinha,
Oferta à Côte d'Azur
E apanhada a mil quilómetros
Ainda com o orvalho preso
Aos espinhos do guipur,
Abafasse as flores caríssimas
E influísse nos termómetros,
Fizesse as mulheres ciumentas,
Desse ao Maio mais calor,
E ao Festival do Livro
(Um pouco moche, confesso)
O best-seller do amor.
(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)