Tu és a Araucária Excelsa,
A Criptoméria ]apónica,
Minha Hidrângea Hortênsia,
Celsa Rosa de Abril, água tónica.
Araucária, és gigantesca
Apesar de pequenina,
Com andares de amor, e fresca
Como a relva e a bonina.
Como criptoméria, o críptico
Da natureza que tens
É dares-te íntegra no tríptico
De Graças em que me vens
Pois vales por três ou trinta
Na sã multiplicação
De vinte mulheres de tinta
Que escreve o teu coração.
Como hidrângea és toda água
De sede e lágrimas junta,
Minh'alma contigo é a mágoa
Que me dá tanta pergunta
Que te faço do passado,
Com que te aflijo de dia
Por tanto engano amargado
No copo desta alegria.
Vamos beber água quente
Nas Fumas do nosso amor
Para esquecer tanta gente
Empenhada em tua dor:
Jacinto, Cravo, Narciso,
Adónis de Beladona:
Mas sempre esse alto juízo
De Victória Régia à tona,
Que, pairando misteriosa
Nas podridões do paul,
Lá se alarga a branco e rosa,
Cá me cobre a rubro e azul.
És como a junça e a canteira
Que veste os montes da Ilha,
Minha amada verdadeira
Podendo ser minha filha.
És o vegetal de pedra
E a lava da incandescência,
A bomba de amor que medra
No que parecia indecência
E afinal é fogo verde
No "Bléchnum Brasiliense",
Fumarola que se perde
Antes que em mim se condense.
És a flor do Monte Escuro,
Das azáleas a rainha,
Amor de animal te juro
Pela barba do Padinha.
É isto acaso a aridez
Da rubra flor do deserto
Que, chorando em mim, te crês
Temendo teres-me tão perto?
Não vá crestar-me teu beijo,
Ser teu amor meu desvairo,
Criar cinza em meu desejo,
E algum corisco no Cairo.
És o vegetal de rocha,
A maçã de pedra pome,
A cordeirinha e a cabrocha
Do leite da minha fome.
Alcalina para o mouro,
Em tudo constante e vária,
És a minha hortense de ouro
E, à minha porta, araucária.
A margarida, tomada
Por bolota de suíno,
Brilha firme e recatada
No mar largo ou no intestino
E sobe no verde amargo,
Bandeira ao vento contrária,
Do mar largo, do mar largo,
Como ano a ano a araucária.
Tenho na pedra da porta
O cântaro de chorar
Minha margarida morta,
Minha araucária solar,
Torre verde, cruz de estrada,
Vela e leiva de ananás,
Lomba negra, unha cravada
Em pão ou amor, tanto faz.
Araucária ramo a ramo
(Teimo na araucária de ilha
E faço da mulher que amo
Meu anel e gargantilha).
Plantei-a nos versos toda,
Copou na minha linguagem:
Já que não tivemos boda
Tenhamos esta coragem
De trepadeira à janela,
Uma araucária no chão,
E saibam todos que é ela
A araucária e a paixão,
Ela a noite, ela o sossego,
Ela o vento e o ramalhar
Das árvores que dão ao rego
A semente e o esterroar,
Ela a coroa de marquesa
No rompante de leão,
Com passinhos de princesa
De sinople castelão,
Ela toda esquartelada
De sonho e de fantasia,
Fingindo de loba uivada
Quando é pomba de alegria.
Ela, meu frágil escudo
Nas unhas de vermelhão
Que vão rasgando veludo,
Minha pele rasgando vão
Até me levar à boca
Com gestos de sua mão
A minha alma, que ainda é pouca
Para lhe servir de pão.
E enfim, na dupla refrega
Chilreando ante o meu pasmo,
Como os pássaros se entrega
E ruge de amor no orgasmo.
(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)