Corisco de ilha,
Raio celeste,
Levo donzilha
Que alva me deste.
Corusca a espada
Do Arcanjo, e nasce
Da sua folha de lume
Margarida, de que pasce
Cordeirinho ou toiro a gume
De dente como uma faca
Contra cerviz de vaca.
Tudo porém, ilha corisca,
Joga no doce, se a ela se arrisca,
E doce é o mugido,
A baba mais irisada,
O azul d'água do chão,
Poça a pata desenhada,
Recompõe a solidão
Leiteira em pura bucólica
Respeitando margaridinha
Que brota do azul eólica,
Já mulherzinha, avozinha.
Corisco de ilha,
Raio celeste,
Levo novilha
Que a pastor preste,
Pois a donzilha
A outro deste.
E é tudo festa de paus
Batidos nas pedras ermas
Ao som destes versos maus
Das minhas falas enfermas.
E bezerrada e vexame
Quando pastor de ninfas me supunhas.
Não há porém quem mais ame
As deschifradas mulheres
Mas podem faltar-me as unhas.
Ilha corisca,
Samiguelada,
Diamante que risca
A alma desolada,
Por isso te ficou o nome mau
De alma de pau,
Que só a vaqueirinha da má sorte
Resgata no ramo da vida e da morte.
Mas escolhendo-me, ilha corisca,
Sarando-me os sabugos dessangrados
Com seus unguentos Dior apomadados
Por amor aos campos e aos dragões de goela em furna,
Deles rompo como Príncipe Vingador:
Fica uma uma
Para o esquecimento
E um cálice de sangue para o último amor.
(Vitorino Nemésio, 1901-1978, Portugal
in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003)