sábado, abril 02, 2005

Afroinsularidade

Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações

engenhos enferrujados proas sem alento
nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras

Aqui aportaram vindos do Norte
por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e piratas
negreiros ladrões contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos também
e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas

Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas

E nas roças ficaram pegadas vivas
como cicatrizes - cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.

E nas ilhas ficaram
incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas e capelas
para mil quilómetros quadrados
e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência palaciana da ússua
o aroma do alho e do zêtê d' óchi
no tempi e na ubaga téla
e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
e o perfume do alecrim
e do mlajincon nos quintais dos luchans

E aos relógios insulares se fundiram
os espectros - ferramentas do império
numa estrutura de ambíguas claridades
e seculares condimentos
santos padroeiros e fortalezas derrubadas
vinhos baratos e auroras partilhadas

Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.

(Conceição Lima, n 1961, S. Tomé e Príncipe
in "O Útero da Casa", Editorial Caminho, 2004, Lisboa)