A quitanda
Muito sol
a quitandeira à sombra
da mulemba.
- Laranja, minha senhora
laranja boa!
A luz brinca na cidade
de claros e escuros
o seu quente jogo
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.
A quitandeira
que vende fruta
vende-se:
- Minha senhora
Laranja, laranjinha boa!
Compra laranjas doces
Compra-me também o amargo
desta tortura:
a vida a rastejar.
Compra-me a infância de espírito
este botão de rosa
que não abriu;
princípio impelido ainda para um início.
Ah!
Laranja, minha scnhora!
Esgotaram-se os sorrisos
Com que chorava
Eu já não choro.
E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas,
enterrado nas raças
e o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem;
como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas,
à beleza das ruas asfaltadas,
de prédios de várias andares
e à comodidade de senhores ricos.
A alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.
Aí vào as laranjas
como eu me ofereci ao alcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.
Tudo tenho dado
até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-a aos poetas.
Agora,
vendo-me eu própria.
- Compra laranjas,
minha senhora!
Leva-me para as quitandas da Vida.
O meu preço é único:
- sangue.
- Laranja, minha senhora
laranja boa!
Talvez vendendo-me
eu me possuo.
- Compra laranjas!
(Agostinho Neto, 1922-1979, Angola
in "Poemas", Cadernos Capricórnio 28/29
Opal, Lobito, 1975)